sexta-feira, março 21, 2025

«Niels Lyhne», Jens Peter Jacobsen

 

Antígona, 2024. Tradução do dinamarquês de Elisabete M. de Sousa
Posfácio de Claudio Magris, trad. de Miguel Serras Pereira
Uma descoberta de um livro notável de um escritor quase desconhecido por cá. Jens Peter Jacobsen foi um escritor dinamarquês falecido em 1885 com apenas 38 anos de idade e é considerado como uma dos melhores da sua geração, já que era lido e admirado por Rilke, Kafka, Joyce e um tal Thomas Mann, facto sublinhado e destacado pela editora. Rilke dizia que era o seu livro de cabeceira, «porque estava lá tudo». Não valerá a pena ir a estes nomes que só dificultam qualquer comentário já que as suas sombras se colocam atrás da pantalha a observar o conteúdo dos escritos. Sei que me lembrei várias vezes de «Morte em Veneza», o que me leva a pensar até que ponto o Sr. Mann não se terá inspirado neste «Niels Lyhne». Também pensei em Hardy, em Proust, em Canetti, mas que tem isso a ver? Adiante.

É difícil esquecer um livro destes. Aliás, nem isso é possível tal a força que é imprimida ao romance. Trata-se de uma vida. Uma vida de Niels Lyhne, um jovem que se torna ateu, mas não me parece que seja esse o principal tema do livro e apontado várias vezes no posfácio de Claudio Magris. Acredito mais na também referida influência do filósofo dinamarquês Kierkegaard, de Nietzsche, de Darwin e que Jacobsen traduziu a obra principal deste último para dinamarquês. A questão do ateísmo estava muito presente no final do século XIX através do positivismo, mas também é verdade que esta corrente secou bem depressa, tornando-se enfadonha e muito pouco transformadora, dando, contudo, à Ciência um papel determinante. Isto não bastava aos filósofos aqui citados e principalmente a Nietzsche que procuravam uma alternativa espiritual para a humanidade que se afastava irremediavelmente de deus. Mas Niels não é de modo algum um «super-homem» que idealizava o filósofo alemão. É antes um homem que se vê reflectido continuamente pelo passado e o pesa na sua consciência ética livre de amarras religiosas e até sociais. Neste romance a sua vida entra-nos pela nossa dentro, como uma invasão surda, mas verdadeira, uma verdade em extremo, e é isso que o faz o livro ser inesquecível. Nós somos o nosso passado e estamos sozinhos no mundo. Essa é a condição presente em nós e quando caminhamos para o futuro levamo-lo com ele, não como um fardo (isso será muito luterano ou católico, como preferirem!), mas como um conjunto de momentos felizes ou trágicos que nos moldam o carácter. 

Jacobsen era igualmente botânico e um apaixonado pela Natureza, como será óbvio imaginá-lo. A sua descrição naturalista dos cenários observados em diferentes estações é de ser guardada nos anais da literatura. A densidade psicológica que ele imprime às suas personagens é de uma grandeza absoluta, comparável a um Proust. Não me atrevo sequer a colocar aqui um trecho deste livro fabuloso. Perderia todo o seguimento, toda a vivacidade ou o vigor que nos obriga a lê-lo num único dia. 

Será um erro a tentativa de classificá-lo em qualquer movimento literário dos finais do século XIX. Não haverá qualquer possibilidade de o compartimentar no romantismo (ele nega-o no romance) ou no realismo. De facto é um livro que «tem lá tudo», repetindo o que dele disse Rilke, mas é de uma coerência total. Pode ser naturalista, até anarquista, pouco importa. Aquilo é vida e morte. Senso e não senso. Paz e ferocidade. Torno e retorno.

Uma referência à tradução directamente do dinamarquês de Elisabete M. de Sousa: não terá sido certamente fácil e as suas notas são utilíssimas para o leitor não familiarizado com a Dinamarca e a sua cultura nórdica. É uma tradução que nos dá segurança, confiável, portanto. O mesmo acontece com a tradução do posfácio de Claudio Magris, autor incontornável, por Miguel Serras Pereira e que, salvo melhor opinião, deve ser lida, mesmo, só no final da leitura contrapondo aqui e ali alguma opinião nossa.

alc