segunda-feira, setembro 16, 2024

«Derrubar Árvores - Uma Irritação», Thomas Bernhard

 

Sistema Solar/Documenta, Abril de 2024, Tradução e Prefácio de José A. Palma Caetano.
(Não segue o AO90)
Se isto é uma simples irritação, o que se encontraria se Thomas Bernhard estivesse em fúria! Não diz mal quem quer, só quem pode. E este autor austríaco é cáustico para com a sociedade literária vienense. O livro não tem parágrafos, é uma torrente de escárnio arrasador apontada aos «artistas» austríacos principalmente, aos que, mostrando uma verve e uma prática de antigos «rebeldes» se tornam odiosos para os seus pares e mesmo para quem lhes dá subsídios que lhes permitem ter uma vida desafogada, assente em quimeras estafadas ou já ultrapassadas há muito. Balofos e inúteis. Thomas Bernhard nem consigo se mostra condescendente ao voltar a encontrar em Viena, após 30 anos em Londres, e muito menos com essa gente de que foi amiga e com quem conviveu. O suicídio de «Joana», uma amiga comum, leva-o a descrever um «jantar de artistas» vienense pretensamente em sua homenagem. Uma lembrança que leva a outras recordações e é esse o mote do livro. A obra foi escrita em 1984, nos anos 80 que o autor abomina, e foi proibida por interposição em tribunal do compositor Lampesberg que se reconheceu na figura de Auersberger. O prefaciador e tradutor José A. Palma Caetano explica bem o escândalo e ficamos atónitos como foi fácil proibir uma obra, retirando-a da circulação (em Portugal aconteceu isso com o opúsculo «O Bispo de Beja» editado pela saudosa &etc. e a acção da PJ cobriu-se, então, de ridículo) com a argumentação que alguém se revia numa personagem! Mesmo depois da justiça dar o dito por não dito e voltar a estar disponível a obra, Thomas Bernhard foi mais longe e proibiu a venda, na Áustria, não só do «Derrubar Árvores», mas da totalidade dos seus livros.

Tenho pensado bastante sobre o particular desconforto que os melhores escritores e compositores austríacos têm para com o seu país. Não foi só Thomas Bernhard a mostrá-lo. Relembro aqui a ostracização e perseguição a que foram sujeitos Ingeborg Bachmann, Karl Kraus, o compositor Georg Friederich Haas (que eu tive a sorte de ver a composição, na Casa da Música, o seu «In Vain» contra a FPO de Haider e a extrema-direita) hoje exilado nos EUA, a nobelizada e autora de «O Piano» e «Manual de Sabotagem» Elfriede Jelinek (que editei na Deriva e que em três livrarias de Viena, ninguém sabia quem era, ou teriam algum livro à venda!), Musil, Broch, Peter Handke (este último quase proscrito), Marlen Haushofer e outros, tantos outros. No caso de Thomas Bernhard e particularmente neste livro ele dá razões de sobra para que tal aconteça na democrática (mas não tanto assim) Áustria. Lembremo-nos que todos eles ressaltam o antissemitismo e nazismo larvar que ainda hoje permanece na Áustria, sem que este país tenha sequer sentido a culpabilização sobre a Alemanha ou uma desnazificação com esse nome. Além disso, não será por acaso que a Áustria foi dos primeiros países, se não mesmo o primeiro, a aliar a democracia-cristã com a extrema-direita.

«Ser artista significa na Áustria, para a maior parte, submeter-se ao Estado, seja ele qual for, e ser por ele sustentado durante toda a vida. O ser artista na Áustria é um caminho abjecto e hipócrita de oportunismo estatal, que é pavimentado de bolsas de estudo e prémios e atapetado de condecorações e que termina numa sepultura de honra no Cemitério Central.» (pág.170)

Tal como em «Betão», já aqui falado e analisado, para além da impotência das personagens de Thomas Bernhard em modificar seja o que for, visto haver sempre os empecilhos burocráticos de Estado e da sociedade baseada no dinheiro e no seu poder, para além disso, é possível retratar igualmente Portugal, os seus elementos ditos artísticos e literários, e fazê-los emergir no palco mais ou menos hipócrita, mentiroso e ignorante de que é feito o «milieu», em francês, que soa melhor. Quando escrevi, ao início, que não diz mal quem quer, mas quem pode, lembro-me, para só citar os contemporâneos, de um Luiz Pacheco e o seu «sonâmbulo chupista», uma Natália com o deputado Morgado, Cesariny com o «Virgem Negra» ou Almada a zurzir no Dantas. Com uma diferença: Thomas Bernhard é atravessado por uma melancolia e uma tristeza que nada têm a ver com os nossos. Mas isso é característico das terras alpinas, não é? Morre em 1989. Fica a sua obra extraordinária.
alc