quinta-feira, setembro 05, 2024

«A Queda dum Anjo», Camilo Castelo Branco

 

Camilo. «A Queda dum Anjo». Edição digitalizada pela BNP, 2013 (a partir da edição de 1866, seguindo o AO45)
Nada melhor (maneira de dizer) para preparar a rentrée  política (pardon my french) do Parlamento luso do que munirmo-nos atempadamente de um exemplar de «A Queda dum Anjo». Não tenho a certeza, mas creio que foi o primeiro livro que li dele, requisitado numa biblioteca da Gulbenkian. Ou tinha-o comprado na colecção Unibolso. Não larguei Camilo até hoje, tal como o Eça. Grande Luís Nogueira meu professor de Português, num colégio mal afamado numa terra atravessada pelo Nabão, que nos fez o favor de nos pôr nas mãos tal livro, que até nem era aconselhado pelo Estado Novo! Até porque acaba bem - dois divórcios realizados e felizes. 

Quem não conhece Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda? Só o nome do nosso personagem já nos arremete para a caneta viperina e arrasadora de Camilo Castelo Branco. Calisto Elói, legitimista, genealógico, católico tradicionalista e adorador do santinho Miguel, anti-malhado, realista pois claro, leitor e sabedor profundo dos clássicos gregos e romanos cai no goto das gentes nobres e tramontanas do círculo eleitoral de Travanca e é eleito para o parlamento, embora pretenda não jurar a Carta Constitucional. Deus e os padres permitem-lhe o perjúrio e aí vai ele para a capital, uma «babilónia» de costumes e valores corruptos. O seu projecto, a sua narrativa, como hoje se diria, é repor as leis dos antigos forais e ordenações vinda de antanho desde Afonso I. Nada de pouco ambicioso! A sua verve faz rir a assembleia, mas isso impele-o a dobrar a dose das suas «válvulas ejaculatórias» na sua oratória sustentada em Sólon, em Cícero e, claro, em Demóstenes. Não tardou a sumir esses conciliábulos e ideias coevas em poses liberais e esquecer a província. De morgado passa a barão. Não conto o resto.

Dizia eu que era necessário ler este livro antes da abertura do parlamento actual, entretanto transformado num chiqueiro por via de 50 deputados que sabe-se lá por que razões foram eleitos e nem eles saberão porquê ou para quê. Também eles ultramontanos e passadistas fingem esquecer que já estiveram 48 anos no poder e choram exigindo mais. Não são os únicos: entre Bugalhos, Césares, Soares (Hugos), Melos, Correias, Núncios, Matias, o ectoplasma de Calisto Elói sai-lhes pela boca fora e as tristes figuras protagonizadas por ele, na sua primeira fase, antes de conhecer o amor descrito por Camilo como sintomas de enfermidades várias: «[esses sintomas] não descobrem as pessoas inexpertas; uma é o amor, a outra a ténia. Os sintomas do amor, em muitos indivíduos enfermos, confundem-se com os sintomas do idiotismo. É mister muito acume de vista e longa prática para descriminá-los. Passa o mesmo com a ténia, lombriga por excelência. O aspecto mórbido das vítimas daquele parasita, que é para os intestinos baixos o que o amor é para os intestinos altos, confunde-se com os sintomas de graves achaques, desde o hidrotórax até à espinhela caída.» O homem aos 44 anos descobre o amor numa prima em quarto ou quinto grau, porque assim exigem os Barbuda. Casado, deixa Teodora a criar os patos em Travanca. Como disse antes, o romance acaba em bem para as duas partes o que é coisa deplorável para as instituições de gestão da moral alheia.

Ele há, no parlamento, hoje, enfermidades várias. Mas quanto ao burnout anunciado de quem os ouve por mais vezes que o senso obriga, ninguém fala. Alguma coisa se esgotou e nada mudou desde os anos da Regeneração do século XIX português até hoje. Haver o tal chiqueiro na eminente assembleia e que se lute contra eles, não desculpa a verruma e a quase inutilidade daquele espaço na democracia, já de si muito doente. Quer-se outra coisa.

alc