segunda-feira, setembro 30, 2024

«A Ordem do Dia», Éric Vuillard

 

D.Quixote, 2018.Tradução: João Carlos Alvim
Fixem a data e o local de uma reunião com vinte e quatro personalidades: Reichstag, Berlim, 20 de Fevereiro de 1933. Anfitrião: Hermann Göring, na ocasião, presidente do ainda Parlamento antes de ter ardido totalmente. Apontem estas empresas: Opel, Krupp, Siemens, IG Farben, Bayer, Allianz, Telefunken, Agfa, BASF e Varta. Conhecem? Éric Vuillard lembra-nos delas assim: 

«Por estes nomes, conhecemo-los. Conhecemo-los até muito bem. Estão aí no meio de nós. São os nossos carros, as nossas máquinas de lavar, os nossos produtos de limpeza, os nossos despertadores, o seguro da casa, a pilha do relógio. Estão aí, em toda a parte, sob a forma de coisas. O nosso quotidiano pertence-lhes. Cuidam de nós, vestem-nos, iluminam-nos, transportam-nos pelas estradas do mundo, embalam-nos. E os vinte e quatro homens presentes no palacete do presidente do Reichstag, nesse 20 de Fevereiro, são apenas os seus mandatários, o clero da grande indústria; os sacerdotes de Ptah. Mantêm-se aí impassíveis, como vinte e quatro máquinas de calcular às portas do Inferno.» (pág.22)

Apontem, igualmente, os nomes destes vinte e quatro industriais e homens da banca: Wilhelm von Opel, Schacht, Gustav Krupp, Albert Vögler, Quandt, Flick, Tengelmann, Fritz Springorum, Rosterg, Brandi, Büren, Heubel, Schnitzler, Stinnes, Schulte, Ludwig von Winterfeld, Witzleben, Reuter, Diehn, Fickler, Loewenstein zu Loewenstein, Grauert, Schmitt, von Finck, Stein. Vale a pena gravá-los aqui. Todos eles tiveram as mãos sujas de sangue dos campos de concentração em trabalho escravo. Nessa reunião do Reichstag untaram as mãos de enormes somas de dinheiro para Göring e para as SS (já agora vestidas e fardadas pela Hugo Boss). Ganharam fortunas colossais com a economia de guerra erguida por Hitler. A Alemanha foi destruída. Eles não. Permanecem nas nossas vidas, ainda. Tal como nos lembra Éric Vuillard neste livro memorável a quem foi atribuído o prémio Goncourt de 2017.

«A guerra tinha sido rentável. A Bayer arrendou mão-de-obra em Mauthasen. A BMW contratava em Dachau, (...), A Daimler, em Schirmerk, A IG Farben recrutava em Dora-Mittelbau, (...), em Buchenwald, em Gross-Rosen, em Sachsenhausen, em Buchenwald, em Ravensbrück, em Dachau, em Mauthausen, e explorava uma fábrica gigantesca no campo de Auschwitz: a IG Auschwitz, que, com todo o impudor, surge com esse nomeno organigrama da empresa. A Agfa recrutava em Dachau. A Schell, em Neuengamme. A Schneider, em Buchenwald. A Telefunken, em Gross-Rosen e a Siemens em Buchenwald (...) e em Auschwitz. Todos se tinham precipitado sobre essa mão-de-obra barata.» (pág.138)

Estes empresários, após 1945, nunca esconderam o seu racismo acusando os ocupantes aliados de tratarem os alemães «como negros» (palavras de Alfried Krupp, filho de Gustav Krupp) e colaborador activo da abertura do Mercado Comum «rei do carvão e do aço, o pilar da paz europeia». A desfaçatez desta gente não tinha limites: depois de organizações judaicas, em 1958, exigirem reparações monetárias aos poucos sobreviventes dos «lagger», a «negociação» ficou pelos 500 dólares a cada um!

Os factos falam por si, pouco mais há a dizer quando fechamos este livro. Resta um mal-estar perante a sua leitura que não conseguimos disfarçar. Creio que esse desconforto é aumentado pela possibilidade real de se cair novamente nesse abismo e cuja queda nunca é igual no desenrolar da História. Ela nunca se repete da mesma maneira. Como sabemos. Sabemos?

alc