sexta-feira, agosto 30, 2024

«Caminhar - Uma filosofia», Frédéric Gros

 

Antígona, 2023. Tradução de Inês Fraga. Não segue o AO90
De Frédéric Gros conheço o seu livro «Desobedecer» editado igualmente pela Antígona. Livro interessante de seguir, não se pense que é de auto-ajuda, o que não quer dizer que não vos ajude. De jeito enciclopédico, leva-nos a viajar pela ideia filosófica da caminhada por alguns dos seus protagonistas mais conhecidos: Thoreau, Nietzsche, Nerval, Kant (este chato menos caminhante que os outros), Rimbaud, Rousseau, Kierkegaard, Hölderlin e até Gandhi. Outras pequenas referências são-nos dadas conforme a narrativa e a procura de Gros, como, por exemplo, as errâncias dos primeiros monges cristãos proibidos pela igreja sedentária ou os peregrinos de todos os matizes que encontram a «revelação» caminhando incessantemente.

E, por falar em «caminhar incessantemente» desconhecia, de todo, a doença dos «caminhantes loucos» capítulo do livro que, se o adquirirem, não devem deixar de ler. Nerval e Rousseau encontram-se, escreve Gros e recorrendo à opinião de alguns «médicos pouco inspirados», entre os chamados «dromomaníacos», um síndrome de doença mental que obriga o paciente a caminhadas repetitivas e intensivas. O mentor desta teoria foi Achille Foville, sócio da Sociedade Médico-Psicológica, e que, em 1875, descreveu como patológicos «o gosto por viagens intempestivas e a paixão migratória»! Pois: fosse dizer isso a uma família irlandesa com fome e que emigrava para os EUA ou Austrália que tinha uma patologia dromomaníaca e que mostrava uma «impossibilidade de permanecer em casa»!! Gostaria muito de ver a reacção dessa família para com o senhor Achille. No entanto, teve a boa educação (já que senso demonstrou não ter) de distinguir dos chamados dromomaníacos os «...imbecis que não conseguem estar parados e deambulam tolamente; os dementes que materializam o seu delírio em errâncias sem destino; os dipsomaníacos (bêbados inveterados) ou eratómanos que saem de casa para se precipitar na lama das cidades e aí satisfazer os seus vícios (sic!).» (pág.77) Haja paciência para ler estas coisas sem ser nos programas eleitorais dos «iliberais»!

Gostamos de ler «Caminhar», embora o autor nos avise que esta actividade não é um desporto. E ainda bem que não o é. Gostamos nós de caminhar na natureza em silêncio, comunicando com as pedras e as árvores ou os pássaros, ou correr numa passadeira como um hamster amestrado num ginásio a cheirar a suor? É escolher... por mim, que já usei as duas experiências, fixei-me na primeira proposta. Contudo, ao finalizar a leitura deste livro, vi-me como um amador das caminhadas: comparar-me com as pernas de Nietzsche que andava os seus 50 km por dia nas margens do lago Léman (onde já caminhei, por acaso) é impossível, tal como com Rousseau que caminhou incessantemente quando era miúdo de 20 anos e no seu Outono da vida; nos entrementes, frequentava os salões sociais onde se fartou. Hölderlin foi outro que caminhou de Estrasburgo até Bordéus, fazendo com que os críticos e amigos assentassem que houve um poeta antes da viagem e outros, após-Bordéus! Ou seja, o enorme poeta procurou claramente a ruptura que o levou a ser guardado numa torre e tendo, como leal amigo, um marceneiro, seu tutor. Já Rimbaud conhecemos bem de que é feito: a partir dos 15 anos nunca teve sossego na sua errância constante. Por não ter dinheiro, fugia a pé pelas estradas e assim permaneceu toda a sua vida poética e de comerciante de armas. Sabemos o fim, não necessariamente ligado às suas longas caminhadas. Já não se poderá afirmar o mesmo com Robert Walser, igualmente um grande caminhante, arredado estranhamente ausente deste estudo de Gros, que faleceu num trilho de montanha que contornava o Hospital psiquiátrico de Herisau, em 1956. Sinto-me, pois, no direito mais que legítimo e, aliás, muito pouco arrogante de me identificar com as caminhadas diárias e circulares de Thoreau que não saía da floresta Concord, aproveitando os dias que formavam o conjunto das estações do ano as mudanças, as transformações, que a natureza tinha o condão de nos apresentar. Monótono? Pois sim: «A caminhada é melancólica, monótona. É por isso que nunca se revela enfadonha. Devemos opor a monotonia ao tédio. O tédio é a ausência de projectos de perspectivas. Giramos em volta de nós mesmos. (...) A caminhada nunca é entediante. Apenas monótona. Quando caminhamos, vamos a algum lado, estamos em movimento, o passo é uniforme. Há demasiada regularidade, demasiado ritmo para que a caminhada provoque tédio.» (pág.139)

As caminhadas nas cidades também não são esquecidas, mas nota-se um certo desprezo do autor perante as fugas e caminhadas urbanas. Só o espírito de 'flâneur', quer de Baudelaire e Walter Benjamim, quer da Teoria da Deriva de Debord e dos situacionistas (Groz dedica a este último um único pequeno parágrafo) é tido como viável, tal como nos diz neste trecho que reproduzo:
 
«Subversão da especulação. O 'flâneur' resiste ao produtivismo. É perfeitamente inútil, mas não é passivo. Não faz nada, mas persegue obstinadamente tudo, captando instantaneamente choques, encontros, imagens. Sem o 'flâneur', quem poderia atestar o que acontece nos cruzamentos? Cada um de nós produz às cegas a sua série de fenómenos. O 'flâneur' apreende as centelhas, as fricções, num piscar de olhos.
Subversão do consumo. A multidão perde-se no seu devir-mercadoria. Arremessado de um lado para o outro, o indivíduo torna-se presa dos movimentos. A multidão consome, as avenidas devoram. Os letreiros, as montras existem para fazer circular mais depressa as mercadorias. O 'flâneur' não consome nem é consumido. Respiga, rouba. É verdade que nunca recebe, ao contrário do caminhante das planícies e das montanhas, a paisagem como oferenda pelos seus esforços. Mas capta, apanha instantaneamente encontros improváveis, momentos furtivos, coincidências fugidias. Deita a mão a vinhetas e faz fluir em si a chuva fina das imagens roubadas.» (pág.220)

Talvez por isso, o registo (e roubo assumido) de imagens pela fotografia e pelo desenho urbano tornou-se, hoje em dia, um modo de subversão impossível de imaginar em meados do século XX.

alc

quarta-feira, agosto 28, 2024

«O Passo da Floresta», de Ernst Jünger

 

BCF Editores, 2021. Tradução de Maria Filomena Molder. Capa de Ana Jotta. Não segue o AO90
Uma edição de 1995 da Cotovia, traduzida por Maria Filomena Molder, já tinha sido colocada nas livrarias. Pelo que entendi, esta é uma excelente nova versão. 
Não conheço suficientemente a obra de Ernst Jünger ao ponto de me alongar muito em qualquer tentativa de interpretar a sua filosofia como um todo. Fico-me por este livro, lembrando-me vagamente que desde há uns anos ter lido apressadamente «Eumeswil», editado pela Ulisseia em 1977 e «Chasses Subtiles», da Christian Bourgois, editado igualmente nesse mesmo ano. Não li ainda «Tempestades de Aço» sobre a sua experiência nas guerras. Ainda os mantenho, apesar das vicissitudes várias da vida dos livros que teimam em acompanhar-me. Sinceramente, nem sei explicar bem por que razão este autor vive comigo há tanto tempo, sendo ele um conservador assumido. Mas não é só por isso que o tenho e o leio de quando em vez, visto que é necessário conhecer o que pensam os conservadores de várias matizes e qual a acção concreta que os faz mover. Vamos a factos: o que me afasta dele é o militarismo e o nacionalismo latente nos seus escritos, mesmo que se esforce em recusar qualquer laivo racista. Sendo difícil esta posição assumida, não é de todo impossível de a concretizar. O que me leva a lê-lo é a sua iconoclastia: amante da natureza, de Nietzsche (do verdadeiro, do que entende que o Super-Homem é o escravizado e que a sua luta constante é o dia em que se libertará), do seu ateísmo e niilismo e, igualmente o facto de duvidar tanto da Humanidade, como da democracia burguesa que, a ser concretizada totalmente, levará inevitavelmente à ditadura baseada, contudo, em eleições. Sendo este livro escrito em 1951, não nos será muito difícil, hoje em dia, concordar com ele; infelizmente, temos conhecimento real do crescimento contínuo do aparecimento de democracias «iliberais» (eufemismo para o fascismo) pelo mundo fora. Afirma neste «O Passo da Floresta» que a um ditador não lhe convém um resultado eleitoral de 100% porque lhe retiraria toda e qualquer hipótese numa existência de oposição; assim, será avisado que se mantenha 2% de votos ou vontades que se oporão à sua governança, nem que sejam teleguiadas pelos estados. 98% seria o ideal, portanto! Essa percentagem residual manteria a possibilidade infinita de um exercício totalitário de sucesso. O que não impediria, simultaneamente, de um «desterrado», uma das «figuras» tratadas posteriormente por Jünger tal como a de «trabalhador», um opositor consciente, em accionar todo um tipo de momentos políticos que levassem ao desgaste do poder totalitário, votasse ou não, participasse ou não nas eleições «democráticas». Não é por acaso que hoje vemos a banalização do acto democrático por Estados que ou não seguem as suas próprias constituições e abastardam os resultados eleitorais ou cometem fraudes cada vez mais frequentes legitimadas por uma nova necessidade de um estado de excepção. Um Carl Schmitt assinaria por baixo, tal como este novo Leviatã protagonizado por Jünger. Exemplos não faltam nos dias que nos passam pelos nossos olhos: Trump, com o assalto ao Capitólio, Macron que não reconhece os ganhos da esquerda nas urnas, Putin, Maduro... De qualquer maneira, Ernst Jünger avisa-nos que o passo da floresta pode ser tanto a liberdade-refúgio para nós próprios como para o outro reconhecível e essencial para uma sociedade livre. Mas, para além desse ethos social, pode ser igualmente o nosso retiro antes da morte, um sentimento de alguma coisa já feita, realizada. Uma necessidade de partir, sem medo de tomar a liberdade em mãos. É um livro vagamente orientalista, mas com uma grande ânsia de liberdade que a Alemanha pouco lhe deu e que a Europa e o Ocidente não cumpriram de todo, restando somente a rebelião como última arma. A única racional, já que o Iluminismo falhou em todo o século XX que ele conheceu bem. Infelizmente, bem demais.

Ernst Jünger morre aos 102 anos, em 1998. Lutou na I Guerra Mundial (antes dela já lutava em África pela Legião Estrangeira, com apenas 15 anos, tendo sido resgatado pelo pai!) e foi ferido sete vezes, tendo recebido os acostumados louvores chauvinistas alemães. Pertenceu a unidades de choque que, pela calada da noite, atacavam as trincheiras inimigas e degolavam as sentinelas com as baionetas. O que não o impediu de amar os insectos, os animais e as plantas ao ser um entomologista, zoólogo e botânico de renome. Perante isto, só me resta desejar que nenhum filósofo tenha responsabilidades governamentais ou desenhe o destino de um país e de um povo! Era, igualmente, um pesquisador sensorial e um opiómano, embriagando-se e experimentando todas as drogas que lhe vinham às mãos, escrevendo num estado de êxtase, o que lhe vinha à cabeça. Muitos dos seus melhores livros estão aí para o provar. Militar exemplar para os cânones habituais das casernas, claro que nos anos 20 e 30, Hitler e os seus meninos de coro andaram-lhe a arrastar a asa, mas Jünger renegou sempre o nazismo, talvez pela sua origem aristocrata, e a partir de 1943 chega a ser vigiado pela Gestapo. O exército, que ele tanto amou, mata-lhe um filho em Itália, obrigando-o a uma missão suicida num batalhão disciplinar e, claramente, por motivos políticos. Deixo-vos com um trecho deste «O Passo da Floresta» sobre a liberdade:

«O verdadeiro problema reside, antes, no facto de uma grande maioria 'não' querer a liberdade, no facto de até ter medo dela. É preciso 'ser' livre, para chegar a ser livre, porque liberdade é existência - é, sobretudo, o sentimento harmónico da existência e o prazer, sentido como destino, em a realizar. É, então, que o ser humano é livre, e o mundo cheio de coacção e de meios de coacção tem de servir, daqui em diante, para tornar visível a liberdade em todo o seu esplendor, do mesmo modo que as massas da pedra primitiva, pela pressão que exercem, fazem germinar cristais.
A nova liberdade é velha, é liberdade absoluta na roupagem da época; pois, conduzir uma vez mais, apesar de todas as astúcias do espírito do tempo, ao triunfo da liberdade: eis o sentido do mundo histórico.» (pág.119)

«O Passo da Floresta» deve ler-se com os olhos de hoje; não perderão nada porque a sua actualidade é impossível de esconder. Pelo medo que as grandes massas mostram ter por essa liberdade posta em causa cada vez mais por pequenos führers que se vão apresentando aqui e ali nas ruínas de uma sociedade verdadeiramente doente em que a guerra permanente, a anomia, a violência destrutiva e a ignorância surgem como um vórtice que nos arrasta para um fim anunciado. Ler Jünger talvez nos aplaque a vontade de mergulhar nesse vórtice. 

alc

domingo, agosto 25, 2024

«Ruínas, ruínas e ruínas. Como vos amamos tanto!»

 

Ruínas do Hotel Universal nas termas das Pedras Salgadas
Ruínas do Sanatório do Caramulo
Tenho por mim a dar-me melhor com o campo. Substituí as praias já há tempos e a última vez que estive numa, ou seja, este mês durante quatro dias, apanhei um escaldão nos pés, palmas incluídas o que para além de incapacitante é de uma grande estupidez que assumo publicamente. A humanidade trata mal o planeta, recebe a resposta certeira nas plantas dos pés. Há quem se esqueça de pôr protector solar nas orelhas, mas quem o espalharia na sola dos pés? 

Há três anos escrevi que gosto da decadência dos hotéis que já foram ricos e cheios de charme. Hoje o capital que, em Portugal, não chega a nada acumular, não tem tempo, paciência ou dinheiro para os reconstruir. Deixa-os fenecer e, ao lado, sem pudor ou respeito algum, trata de construir novos hotéis que de charme só têm o nome. Como não há licença para destruir as suas ruínas, às dezenas, na chamada Rota das Termas (falo do que vi: Pedras Salgadas, Vidago, Carvalhelhos e Chaves), constroem edifícios horríveis, modernaços e baratos, à Siza ou à Souto Moura, junto a rotundas onde se erigiu uma enorme torneira em mármore jorrando água - uma homenagem às termas, pois claro! Mas o Caramulo, a que vou todos os anos, não fica atrás em miséria e desleixo. Procuro-o por motivos óbvios a que já aludi desde que me divorciei das praias: a procura incessante e obscura da minha alma na decadência dos povos peninsulares retratados nos seus antigos hotéis ainda de pé e, concomitantemente, tratar do meu aparelho digestivo. São razões de peso. Por outro lado, ainda posso ler qualquer coisa ou ouvir a minha música nos phones, sem ser ensurdecido por música aos berros pelas colunas de praia. A comida nos restaurantes das vilas termais tem qualquer coisa de contraditório: após a ida a banhos refastelados em águas límpidas com jactos retemperadores, aos copos de água mineral emborcados com ou sem gás, a ida à sauna onde, cautelosamente, não se pode permanecer mais dos que 20 minutos (eu adormeci numa e sem relógio!), temos de almoçar perante um menu invariavelmente pantagruélico: posta mirandesa de 300 gramas, bacalhau com broa acompanhado com batatas em azeite quente, vitela assada cuja dose dá para uma família inteira, polvo à lagareiro e isto só para falar nos pratos mais levezinhos, não é? E escuso de falar do vinho servido. Quando dizemos, humildes e cautos, que só queremos um copinho, o empregado (geralmente um miúdo da escola profissional de turismo da região) olha para nós com um desdém que até mete impressão. Obriga-nos, quase (quase!) sem querer, ao estribilho comum neste sítios de perdição: «Pronto, deixa a garrafa!». 

Voltemos às ruínas: se disse atrás que hotéis abandonados eram às dezenas em termas, alguns com traças arquitectónicas que um país a sério nunca deixaria de as recuperar vemos, agora às centenas, pensões e residenciais igualmente abandonadas e sem nenhuma intervenção pública ou privada. É impressionante. Algumas situam-se nos centros das vilas e, para além da hilariante arte rotundal dos municípios, encontramos «soluções» que são pior que o deus me livre: tentando imitar o Vhils pintam nas fachadas dos edifícios em ruínas, e sob fundo pintado de branco, a cara do Saramago, da Amália, do Camilo ou do Eça que, ainda por cima, o vão colocar no Panteão, por viva força de um sobrinho-bisneto-autor e que é uma verdadeira bosta como escritor. Um optimista diria que estas ruínas assim «intervencionadas» sempre são solução melhor com aquelas personagens do que, imaginemos, um Valter Hugo Mãe ou um Pedro Chagas Freitas. Um pessimista, conhecedor do país que temos, contraporá: «Deem-lhes tempo!».

E o tempo trata melhor as suas ruínas que os homens e mulheres deste país. Há sempre uma grande altivez num hotel abandonado ou em decadência de ano para ano. Pessoalmente, dou-me bem com esta.

alc 

sábado, agosto 24, 2024

«A Malnascida», Beatrice Salvioni

 

Alfaguara, Outubro de 2023. Tradução de Ana Cláudia Santos
Malnascido por malnascida, haja quem, e o resultado é o mesmo: leitura obrigatória de uma nova escritora italiana e, para mal de alguns críticos lusos, a onda Elena Ferrante (e talvez a de Roberto Saviano) terá muito a ver com o sucesso momentâneo deste «A Malnascida». Os factos aí estão: Beatrice Salvioni, de 28 anos, edita o seu primeiro livro e repentinamente é um best-seller traduzido em 32 línguas. Atenção que não estou a afirmar que estamos perante um mau livro, nada disso. Embora alguns diálogos pudessem ter sido trabalhados mais um pouco (alguns encontram-se nos mesmos patamares de uma Enid Blyton ou de um Mário Cláudio, e isto não é um elogio. Este último estará bem perto do rés do chão!).

A ideia do romance não sendo uma coisa nova, lê-se bem e a época está bem retratada ao pormenor o que lhe dá verosimilhança e seriedade básica para uma leitura que se quer honesta. Se assim é, reconhece-se, igualmente, trabalho e honestidade à jovem autora. As personagens são descritas psicologicamente de um modo eficaz e não se deixam contradizer à medida que a narrativa se desenvolve para situações-limite. 

O fascismo italiano está presente e sente-se o medo inerente a um estado de coisas que vive essencialmente dele. Mas esse medo não é só político. E aqui reside um certo interesse pelo livro e pela sua personagem principal, Francesca. O medo é real, nascido pelas regras duras de uma família da média burguesia que vê com maus olhos a relação cada vez mais estreita com Maddalena, uma jovem pobre e rebelde, incontrolável, livre, numa sociedade que já não o é há muito e assente no totalitarismo edificado pelo Duce. O antifascismo confunde-se com a necessidade de liberdade, da rejeição da guerra (no caso, da Etiópia) e o medo é mais pessoal que social. Principalmente, a ultrapassagem individual do medo. o medo adolescente de que todos nos lembramos em todas e quaisquer frentes, e é aqui que reside o mote principal deste livro. Beatrice Salvioni guarda aqui uma vitória singular porque nos faz recordar o crescimento da juventude que cada um de nós partilha ou que guarda dentro de si. A transgressão por uma educação violenta, seja no desígnio e construção artificial do género, seja pelas imposições religiosas ou sociais alicerçadas em dogmas falsos.

A tradução de Ana Cláudia Santos é impecável e atenta. Parece-me, até, que evitou males maiores nos tais diálogos que referi antes.

alc

quarta-feira, agosto 14, 2024

«Breves Notas sobre Literatura-Bloom», Gonçalo M. Tavares

Relógio D'Água, Maio de 2018, Posfácio de Borja Bagunyà
Gonçalo M. Tavares invectiva-nos sempre. Sejamos nós leitores-Bloom, ou não. Espero sê-lo, porque segundo a síntese elaborada em forma de «dicionário literário», o que é, em si, uma eventual ou aparente contradição segundo a definição do próprio: «Toda a literatura-Bloom é feita contra os dicionários. É um combate entre a fixação e o empurrão (a des-fixação). Tudo o que é fixo é inútil; tudo o que é só é assim, é inútil. Tudo o que interessa à literatura-Bloom é tudo o que é assim,  mas poderá ainda ser de outra maneira. (...)» (pág.27). E atenção aos leitores-Bloom: o conceito de contradição não é o mesmo a que vulgarmente chamamos «contradição»: «Contradições - Não! Ou seja: claro que sim.» (pág.23). É isto que forma um jogo de interminável inteligência com o escritor-Bloom, neste caso, de Gonçalo M. Tavares.

Na letra A, escolho «Abstracto» - «Toda a literatura é abstracta, concretas são as pedras. Não aceitar isto é aceitar a literatura como copiadora do concreto, como uma segunda mesa, ou uma segunda casa. (...) A literatura não é uma cópia dos objectos do mundo: a casa não é casa, e a mesa não é mesa. A literatura tem objectos próprios, completamente distintos dos que existem na vida dos vivos.
Não confundas um escritor com um arrumador de mobílias.» (pág.13)

Continuo na letra A e páro em «Adiposidade» - Há frases adiposas, frases com barriga.
Todo o adjectivo é uma ameaça adiposa sobre a frase. (...)» (pág.15)

Em B, fixo «Bloom» - Nome universal, aplicável a qualquer coisa ou acontecimento. Cadeira-Bloom, livro-Bloom, morte-Bloom, namoro-Bloom. E etc.-Bloom.» (pág.20)

Na entrada D, escolho um trecho de «Diluição» - (...) O método-Bloom tem por base a alteração constante de processos; mas a diluição ser uma alínea dessa mudança não é o mesmo que a mudança ser uma alínea da diluição. (...) O óbvio: se despejares água sobre um texto, estragarás o texto.» (pág.28)

Também em «Direito» podemos ler: «(...) Se os dois lados de uma frase são fixos, isso significa que a frase é sempre recebida a partir do mesmo ponto de vista. Neste caso: ou o leitor é imbecil ou a frase é imbecil.» (pág.29)

Em «Geografia» lê-se: «A localização geográfica é um erro literário. Cada personagem age ou fica quieta, e basta. Nomes de cidades, nomes de países, de bairros, de casas, de pessoas, todos os nomes localizados são desnecessários. O texto literário não está perdido, mas também não está localizado. (...) A única geografia da literatura é a frase.» (pág.39)

Em «Menu», encontramos algumas fórmulas-Bloom (invenção minha): «Um texto-Bloom pode começar a ser lido a partir da página 60, 342 ou 18. Um texto-Bloom pode até começar a ser lido na página 1. (...) As frases cujo valor individual é dependente das 65 743 frases anteriores são frases que não têm valor individual.                                 
Uma frase é como um organismo: existe no mundo ao lado das outras; Mas existe só e morrerá só. (...)
Cada frase deve agir no texto como se o leitor fosse morrer no instante seguinte. Diz rapidamente o que tens a dizer: é isto que o escritor-Bloom pede a cada frase.» (pág.56)

«Patologia» - «(...) Texto estável é texto doente.
Na literatura, a patologia é o tédio e a saúde é a alteração constante dos sintomas da frase. (...) Só uma saúde instável é capaz de exigir a vigorosa caminhada do texto.» (pág.63)

Em «Sacrilégio» pode ler-se, sem cortes (fragmentos-Bloom?, digo eu): «A evidência de frases sucessivas. A beleza onde não existe a mancha. A mancha onde não existe a breve beleza. A frase que pareça terminar.» (pág.68)

É evidente que não poderia faltar neste livro a entrada relativa à «Técnica», tema caro a Gonçalo M. Tavares e que reproduzo aqui uma parte: «(...) A técnica é ter consciência do espontâneo. (...) Toda a frase que resulta de uma batalha, mesmo que breve, é mais forte do que a frase que resulta de um contrato. 
Deverás usar as técnicas que te tornam imperfeito, isto é: que te fazem procurar outras perfeições.
Todo o imperfeito é um início.» (pág.76)

alc

«Stupeur et Tremblements», Amélie Nothomb

 

Amélie Nothomb. (1966). Foto da editora Anagrama
Completamente desconcertante e de uma ironia ímpar, esta escritora belga a viver em Kobe, no Japão onde nasceu, é igualmente prolixa. Quase um livro por ano, desde 1990. Li agora este «Stupeur e Tremblements» guardado há muito na estante, porque entretanto me debrucei sobre outros dela. Tenho-a seguido regularmente e a sua escrita prova que a sua qualidade literária não é incompatível com o riso. Devo dizer-vos, contudo, que o li em francês. Desconhecia que tivesse tradução portuguesa mas, sim, tinha: foi a Asa que lhe deu o título «Temor e Tremor» com a informação adicional que está esgotado; também no Brasil foi publicado, pela Record como «Medo e Submissão». Já o filme de Alain Corneau, em 2016, apresentou o título de «Medo e Tremor»! Visto isto, espero que quem me leia me perdoe eu ter optado pela edição francesa, duvidando mesmo que alguma vez conseguisse a sua edição esgotada na língua nossa. Acresce que Amélie Nothomb, no próprio livro, expõe a razão do título: é que o «stupeur e tremblements» faria parte do protocolo aos visitantes físicos do imperador japonês. Era deste modo, humilhante e vexatório, que se obrigavam os nipónicos a curvarem-se sob a presença imperial. Por isso, não entendo por que razão não se escolheu o título tão português de «Estupor e Tremor». Bastava o dicionário e a própria ironia das palavras e os subentendidos que provocavam.

A narrativa é delirante. Amélie Nothomb, como já se disse, conhece bem o Japão, tendo nascido em Tóquio e vivendo neste momento em Kobe. Sendo belga não deixa por isso de olhar para o Japão com os olhos tão críticos, como legítimos, para a vida no país do Sol Nascente. Seja ela a vida «pessoal», individual de cada japonês ou japonesa, e aqui a condição feminina não é ignorada, como a empresarial - chega a dizer que a existência dos japoneses é vivida para a ideia de empresa - que é descrita de modo magistral por Amélie Nothomb quando trabalhou sete meses na multinacional Yunimoto. Amélie-san é uma subordinada que não tem ninguém para mandar. Acima dela há toda uma hierarquia de autoridade cuja acção é tão completamente kafkiana, como verosímil. “O Sr. Haneda era o superior do Sr. Omochi, que era o superior do Sr. Saito, que era o superior da Srta. Mori, que era minha superiora. E eu não era superior de ninguém.” Conhecendo nós como trabalham as multinacionais, sejam elas japonesas ou não, temos a certeza que tudo aquilo que lemos, com um sorriso nos lábios ou mesmo com riso desbragado, é replicado por todas as pequeninas empresas, imitando os grandes Ceo's e ajustando o que aprenderam nas praxes universitárias para com os colaboradores subordinados, porque isso de trabalhadores já nada tem a ver com as novas e perecíveis startups

Se puderem não percam este livro, ou filme, ou ainda na versão esgotada do português de cá (cuidado com o olx e com o marketplace, optem sempre pelos alfarrabistas) ou do outro lado do Atlântico (tendo atenção ao valor dos reais e às taxas de encomendas).

Albin Michel, Livre de Poche, 1999
alc

sábado, agosto 10, 2024

«Le Murmure», Christian Bobin

 

Éditions Gallimard, 2024
Trata-se do último livro de Christian Bobin antes de falecer, em Novembro de 2022, no Hospital de Chalon-sur-Saône, após doença prolongada. A sua obra é muito extensa mas, do que li dele acho-a muito interessante. Volto a ele, muitas vezes. Quando comprei «Le Murmure», na Payot de Lausanne, nem sequer sabia que ele tinha morrido. Foi o livro que mo revelou, porque o autor avisou ao que ia. Penso que esta edição foi póstuma. De qualquer modo não transparece nela laivos de angústia, medo ou inquietude. Provavelmente, a paz que precede a morte num católico como Christian Bobin. Afirma o seu apego à natureza, às árvores, às nuvens e aos pássaros; aos seus cantos, e principalmente ao silêncio absoluto como forma de atingir um estado-outro, num mundo que já se identifica muito pouco com o pensamento ou com a introspecção. Por coincidência, o mesmo mote que Pascal Quignard deu no seu «L'Homme aux trois Lettres». Durante a sua leitura vi-me obrigado a procurar, na net, o piano de Sokolov interpretando Mozart, Chopin e Bach, várias vezes referido por Bobin, aqui não escondendo já alguma saudade, pela impossibilidade de ir vê-lo num concerto. Ouvi-o enquanto caminhava. Nas suas páginas iniciais, confessa-nos um pedido: «Se este livro deverá ser o último, então é necessário que ele seja o mais jovem de todos os que escrevi.» Talvez o tenha conseguido.

«Espero diante de uma mesa vazia. Sonhar é estar em silêncio. Este sulco de silêncio nos meus lábios é a minha grande viagem. É necessário que em cada momento use e esgote tudo o que possuo para voltar a ser novo. A cada momento. Escrevo para me juntar a vós, meus irmãos e irmãs do mundo analfabeto do sonho, de um sonho que deve tudo ao Monte Branco do coração, pico mais alto das nossas vidas.» (pág.18). Tradução livre.

Deixa-nos igualmente um aviso de amigo:
«Os falsários da poesia são os tolos da escrita. São os nossos piores inimigos. E não falo dos maus poetas. Não: falo daqueles que se apropriam do poeta para melhor servir o mundo. Esta época multiplica-os.» (pág.26)

«O silêncio da noite era tão puro que acordei para o compreender.» (pág.79)

«A poesia não suporta a menor injustiça. Não publiquem mais, interditem e sancionem todo o pensamento pessoal, não impedirão nunca novas catacumbas, refúgios de almas simples e puras, de serem mais iluminadas que o mais rico dos palácios.» (pág.105)

«Encontrem-me algo de mais belo que a escrita, cambada de cães!» (pág.105)

alc

«L´Homme aux trois Lettres», Pascal Quignard

 

Éditios Grasset, col. Folio,Gallimard, 2020.
É um verdadeiro hino à leitura e à escrita. Talvez superior, pela emoção e verdade colocadas em cada palavra, aos variados artigos que Pascal Quignard tem editado sobre literatura. Alguém que se dedique à leitura, fazendo dela uma espécie de remissão do mundo, tentando encontrar algo de novo por dentro das ruínas que nos envolvem, entre elas as línguas, as próprias palavras e as letras, fazendo do silêncio uma premissa para todo o acto de leitura, encontrará neste livro um acompanhante sincero, quase absoluto, um cúmplice atento à vida que levamos. E a vida que levamos é cada vez mais absorvida pelo ruído, pelas poucas palavras sempre repetidas em cada acção, sempre iguais. Pior do que tudo isso é a anulação do étimo das palavras. A eliminação pensada pelo poder das suas raízes. A convocação da ignorância.

Voltemos ao livro e deparamo-nos agora com o espanto e a maravilha das palavras e das letras: comecemos pela palavra «literatura». Não traduzo este trecho de Pascal Quignard para garantir-vos o seu sentido exacto: «Le mot littérature est sans origine. J'aurais consacré ma vie à une proie insaisissable. Dont le nom n'avait aucun sens. Ni usage, ni fonction, ni dessein, ni origine, ni but». Admira-me sobretudo o dessein, o «desígnio» que, segundo Jean-Luc Nancy já aqui falado no seu «O Prazer do Desenho», descreve-o como sendo a origem da palavra «desenho». A literatura, voltando a Quignard, não tem objectivo, não tem obrigações, não constitui um desígnio. Óptimo. Estará então livre de qualquer compromisso que lhe queiram impor. 

Sublinhei o livro quase todo o que significa, dizem os entendidos do sublinhado, que não marquei nada, por exagero. Discordo. No meu caso identifiquei-me de tal modo com «L´Homme aux trois lettres» que o roubei na sua totalidade e dividi-o em fragmentos, tal como prevê a narrativa vária de Quignard. Podia aqui colocar alguns deles. Fico-me, contudo, pelo seu início tentando traduzi-lo para vós. Talvez o seu trecho mais forte, o que é subjectivo, bem o sabemos:

«Amo os livros. Amo o seu mundo. Amo estar na nuvem que cada um forma, que se eleva, que se alonga. Amo continuar a leitura. Entusiasma-me reencontrar a sua leveza e volume na palma da mão. Gosto de envelhecer no seu silêncio, na longa frase que passa sob os olhos. É uma margem avassaladora, afastada do mundo, que ignora o mundo, mas que não intervém nele de modo algum. É um canto solitário que só aquele que lê, compreende. A ausência de qualquer som externo, a ausência total de alvoroço, de gemidos, de apupos, o máximo afastamento da vocalização e da massa humana que só os livros permitem, trazem de volta uma música profunda que começou antes de o mundo aparecer. A verdadeira música pode ser a retransmitida quando é escrita. Amo litteras. Amo as letras. Música silenciosa de estilos dos escritores que preferimos: são, como tantas, nuas, avassaladoras, particulares, íntimas, tocantes, incomparáveis.» (pág.9/10)

«O livro abre-se.
Ler amplia a passagem para a vida, a passagem por onde a vida passa, a luz brusca que nasce com o parto.
Ler descobre a natureza, explora, faz surgir a experiência na palidez do ar, como se se nascesse.» (pág.11)