quarta-feira, março 29, 2023

«Modos de Ver», John Berger

 

Antígona, 2018
Por mera coincidência, vejo-me a ler dois livros que tiveram a mão de Jorge Leandro Rosa em editoras diferentes e sobre arte. Desta vez prefaciou e traduziu para a Antígona, em 2018, um livro icónico de John Berger. Parece-me evidente que um livro que foi publicado em 1972 e sendo talvez um guião de um programa da BBC, visto por muitos milhares, terá perdido o seu fulgor inicial, mas nem por isso estará arredado da sua atualidade principalmente na relação da arte (conceito hoje ambíguo tal como já o era nos anos 60 e 70) com o mercado e com o espetador. Nem todos os livros de ensaio sobre arte são tão úteis como este. Profusamente enriquecido com motivos pictóricos, publicitários ou fotográficos, John Berger leva-nos a questionar todo o papel da pintura para com quem a vê, como a vê e de que modo pode interagir com ela, se for esse o seu propósito. Isto não impedirá um leitor mais consciencioso do que preguiçoso a ir várias vezes consultar a internet para ver melhor os quadros e relacioná-los com os ''modos de ver'' de John Berger. Aí, a leitura torna-se mesmo estimulante. Um livro a ler e a reter.

«O Prazer no Desenho», Jean-Luc Nancy

 

Sistema Solar, col. Documenta, e Fundação Carmona e Costa, 2022
Não concebo que alguém que desenhe, e que sinta prazer nisso, ignore propositadamente este livro de Jean-Luc Nancy, editado e traduzido por Jorge Leandro Rosa, com iconografia final de Daniel Moreira e Rita Castro Neves.

O livro é composto por 16 capítulos, com igual número de «caderno de apontamentos», que são citações várias sobre o desenho, o traço, a linha sobre uma qualquer papel ou material que a isso se ofereça. Palavras e ideias algo densas, mas não impermeáveis, que nos permitem aclarar de um modo rigoroso que prazer é este do «Prazer no Desenho». Leia-se uma, duas, as vezes que forem necessárias para chegarmos às ideias-mestras do que significa o desenho que estará na base do nosso «desígnio». 

Jean-Luc Nancy morre em agosto de 2021, mas ainda teve tempo (e disposição) de endereçar ao editor um esboço de um prefácio a este livro. Apresenta-se um trecho inicial desse mesmo prefácio: 

««Le Plaisir au dessin» forma em francês uma expressão ambivalente: ou ela fala do prazer que se sente ao desenhar, ou então fala do prazer que se põe ele próprio ao desenhar. Poder-se-á pensar que apenas o primeiro sentido é possível e que o segundo não passaria, no melhor dos casos, der uma metáfora ou mesmo de uma absurdidade. Contudo, foi a mistura das duas significações, como dois aspectos de uma mesma e única realidade, que determinou a escolha deste título.
    Ninguém pode duvidar que se tenha prazer ao desenhar. Todas as culturas o atestam e em todas as culturas se verifica o gosto das crianças pelo desenho sob todas as suas formas. Seja num papel ou numa casca, na areia ou mesmo na água ou no ar, a criança sente satisfação em traçar linhas, contornos. Nem sempre se trata de traçar figuras, mas é sempre uma mostração que está em jogo: alguma coisa deve ser mostrada, posta em evidência, manifestada. Talvez não seja mais do que o próprio movimento da mão, ou então é a sobrevinda de uma emoção, de um pensamento, de uma impaciência ou de uma pausa. Algo que se forma em alguns traços, talvez em cores variadas ou por vezes em simples rabiscos numa cornija ou no chão (...)» (pág. 105)

segunda-feira, março 20, 2023

Estudos 3, Galeria Atelier Ícone

 

Março de 2023, Galeria/Atelier Ícone

«Notícias do Bloqueio», de Joana Emídio Marques

 

Joana Emídio Marques, Língua Morta, fevereiro de 2023
Uma antologia de textos publicados no «Observador» e escolhidos por Joana Emídio Marques para a publicação deste «Notícias do Bloqueio» título baseado num poema de Egito Gonçalves e de uma revista de poesia publicada entre 1957 e 1962 com a participação de nomes como Alexandre O'Neill, Carlos Drummond de Andrade, António Reis, o próprio Egito Gonçalves, João Ribeiro de Mello, Orlando Costa, Joaquim Namorado, entre muitos outros.
O próprio título escolhido para o livro muito bem escrito por Joana Emídio Marques dá conta do país que (ainda) temos no plano literário: algo rançoso, promíscuo, indiferente, narcísico no que o termo tem de pior. A autora não descura as críticas que endereça ao «meio». Elas são muitas e reconhecíveis. Verosímeis, mesmo para quem nunca ainda passou pelos meandros do compra e venda literários. Dos festivais, da «crítica», das embirrações, dos ódios de estimação, do desprezo pelos leitores a que votam a maioria de quem escreve e que sabe a receita para vender bem, embora se saiba à partida que não viverá só disso. Terá de fazer mais um esforço, até ao limite do insuportável para qualquer humano, mas suportável para a maioria deles. 

Joana Emídio Marques inicia o seu capítulo mais forte, logo o primeiro, e olha, com emoção e precisão literárias, para os surrealistas. A emoção não fere a narrativa, reforça a vontade de nos dizer que foram aqueles surrealistas, avessos ao poder qualquer que fosse, a mostrar o desespero de viver-se em ditadura. Mais: de viver em ditadura em Portugal. Porque se todas as ditaduras são impossíveis de se viver e mesmo de sobreviver dignamente, o estado de ter nascido neste canto europeu ainda torna a coisa mais capciosa. Foi o que aconteceu desde 1949 em que os surrealistas tentaram formar-se em grupo. Dificilmente para espíritos tão livres quanto o eram desde início e muito novos, na casa dos vinte, tirando Cesariny já trintão. Quando me referia a emoção, como leitor e ao fazer esta ficha de leitura, esta foi-me entregue pela autora quando de uma forma clara utiliza magistralmente o registo biográfico com a poesia, prosa, pintura, instalação ou escultura que saíram das mãos destes homens e algumas mulheres (poucas, aliás. Contam-se, talvez, Natália e Isabel Meirelles). Ler neste ensaio a vida e obra de gente que nunca vergou, que polemizou, que se estava a marimbar para a vida, que queria atingir um grau de ascese poética com um vigor desconhecido até então, só se pode aferir com emoção. Essa emoção é-nos direcionada para as vidas de um Manuel de Castro (filho de um ministro de Salazar que nunca superou uma morte trágica e ainda mal contada da mãe), de um António José Forte, de um Mário-Henrique Leiria, de um António Maria Lisboa (que morreu aos vinte e cinco anos depois de destruída grande parte da sua obra pela família), de um José Escada, de um José Sebag, de um Alexandre O'Neil, de um Pedro Oom (que não resistiu à emoção da queda do fascismo), de um Manuel de Lima ou de um Ernesto Sampaio. Entre outros que formavam o grupo do Café Gelo (negado como grupo por Herberto Hélder) invadido violentamente pela polícia num dos mais aguerridos 1º de Maio de 1962 onde se contaram dois mortos e centenas de feridos em Lisboa. 

A coerência de «Notícias do Bloqueio» mostra-se ainda pela viagem crítica de Joana Emídio Marques para com figuras ímpares que dão força a uma contestação social que anda inevitavelmente de braço dado com as vivas experiências literárias como o austríaco Karl Kraus, Robert Walser, Stig Dagerman ou Sylvia Plath (esta última com a contribuição vivida com ela por Hélder Macedo). 

As palavras da autora são claras, para quem se assume como jornalista literária algo desencantada, não deixam dúvidas: «(...) Os tempos não estão para subtilezas, como não estão para a Cultura, nem para as utopias. É preciso fazer dinheiro, ter prestígio, ser famoso, ter sucesso (seja lá o que isso for) para ter direito a ser falado pelos média. A banalidade tenta recobrir a Cultura com uma superfície lisa, polida e sem atrito, sem zonas de resistência, onde tudo o que é reproduzido se destina a ser consumido e a gerar mais dinheiro. Essa lisura  que recobre o espírito da nossa época, impõe, como sendo Cultura, aquilo que não é mais do que mercadoria supérflua, e o consumo desenfreado como sinónimo de felicidade e bem-estar - sobretudo, para nos convencer de que tudo o que circula no mundo se destina a um progresso, sendo progresso sinónimo de bem, de bom e de belo. (pág.9)».

«No entanto, cheira a podre. É a crítica literária. Actualmente, qualquer crítica negativa, não  ou exultante a um livro, a um filme, a um trabalho discográfico ou a um espectáculo é considerada bullying ou ''discurso de ódio''. Posta de parte como uma filha aleijada, a secção de Cultura dos jornais foi perversamente esvaziada de jornalistas e tomada de assalto por pessoas que vêm de cursinhos de literatura, candidatos a escritores, pessoas de confiança dos grandes grupos editoriais, enfim: gente, gentinha, gentalha que vê no trabalho do jornalista cultural uma forma de amealhar capital simbólico para se tornar conhecido, para publicar os seus próprios livros, etc.(...) (pág13)»

«Um Discurso Escondido - Alfredo da Silva e as greves na CUF durante a I República, 1910-19» de Vanessa de Almeida

 

De Vanessa de Almeida, Bizâncio, 2009
O livro de Vanessa de Almeida constitui uma tentativa de não esquecer um período específico das lutas operárias iniciadas com a I República até 1919 nesse local já mitológico das lutas operárias que foi o Barreiro da CUF. Para nós, uma aposta claramente ganhadora. Período do sindicalismo revolucionário, das Associações de classe que nasciam ao ritmo das desilusões populares face ao novo regime republicano que gorou qualquer veleidade de efetiva melhoria das condições de trabalho ao operariado. Do sindicalismo revolucionário do jornal Avante! de 1910, ao anarquismo de A Batalha e às grandes greves de 1943, já comunistas, o proletariado do Barreiro resistiu sempre e talvez seja o que mais consciência de classe demonstrou na região portuguesa. 

Vanessa de Almeida apresenta vária bibliografia e jornais que consultou pormenorizadamente, para além das atas da administração da CUF onde Alfredo da Silva, patrão «bom», «justo» e paternalista à moda de João Franco, Sidónio e Salazar, e donde vem a máscara do vice-presidente da AIP que não recuava perante milhares de despedimentos e que chamava a novíssima GNR para se aquartelar no espaço da própria CUF. A repressão acompanhou a bonomia paternal com que tratava os operários ou da imagem que fez passar a sua própria propaganda. A autora retira-lhe a máscara numa excelente conclusão ao seu livro:

«Se a imprensa operária analisada permitiu o contacto com o ''registo público'' da luta protagonizada pelos grevistas da CUF, as actas dos conselhos de administração e fiscal da companhia possibilitaram o acesso ao ''registo escondido'' do discurso de Alfredo da Silva. Segundo James Scott, no estabelecimento das relações de poder, o discurso público raras vezes corresponde ao discurso escondido. Numa relação de dominação, os dominados adoptam muitas vezes uma máscara face aos dominantes. Todavia, também as elites têm necessidade de adoptar máscaras na presença de subordinados e, como tal, existe uma disparidade entre o registo público expresso no exercício do poder e o registo escondido, que só será partilhado num ambiente propício a tal. (pág. 124)»

Veja-se, já sobre este paternalismo de Alfredo da Silva, o que diz A Batalha de 8 de abril de 1919, com uma nota de Vanessa de Almeida, informando-nos que não conseguiu confirmar a notícia com outras fontes:
«Quando em tempos os operários fundaram uma Associação de Classe, o Sr. Alfredo da Silva conseguiu, por processos vários, mas que tendiam sempre a atrair as simpatias ingénuas do pessoal, a transformar a associação, fundada para defesa económica dos trabalhadores, numa simples sociedade de recreio, que hoje tem o nome de Grémio Recreativo CUF, fornecendo dinheiro para a compra de instrumentos e organização de uma banda de música, fazendo assim desaparecer a Associação de Classe. (pág.93)»

E as máscaras de Alfredo da Silva e do governador civil da cidade, republicano, caem perante a violentíssima repressão às greves de milhares de operários da CUF e de Lisboa juntando-se a isso a chantagem da fome à população. Leia-se a Batalha de 26 de junho de 1919:
«Em virtude da acção jesuítica de Alfredo da Silva, os habitantes daquela localidade encontram-se sem pão. Tendo ido uma comissão de padeiros ao governo civil a reclamar alguma farinha para que o pão não faltasse, a resposta foi esta: ''Os operários desde que estão em greve não precisam de comer!'' E o digno governador não forneceu nenhuma farinha, razão porque falta pão no Barreiro, onde as crianças passam fome! E são essas criaturas, piores do que feras, que apregoam aos quatro ventos a liberdade e a fraternidade. (pág.113»

Mais que nunca a leitura deste livro de Vanessa Almeida torna-se necessária na desmontagem do que se supõe ser um «patrão bom». Neste caso de Alfredo da Silva, um falso self made man, tal como todos os outros. Mas de quantos «Discursos Escondidos» se faz um patrão jesuítico? Daqueles que são unânimes, até pelos que na esquerda foram criados. Atentemos num operário da CUF «diligente, disciplinado e respeitador» tal como gostava Alfredo da Silva:
«O Alfredo da Silva, caramba! Ele dava a volta ao bairro! Tanta vez que ele ia à fábrica! Tanta vez! Ele foi sempre bom patrão!... Quando nos deram leite com café e cacau, pão com manteiga, foi dele! Um ano, pelo Natal, as prendas que deram aos operários, foi ele! Aos homens foi... parece que era tabaco, se não estou em erro. Vinha da Tabaqueira; e às senhoras, era ou xailes ou cobertores, que ele mandou dar pelo Natal. Portanto, dele, os operários nunca tiveram queixa! Ele castigava era os que mandavam lá, os encarregados! (pág.126)» 
Outro:
«(...) uma vez vinha lá o Patrão. E eu estava a comer, assim que vi, tirei logo o pão e pus dentro da algibeira, mas a algibeira estava cheia de cotão, de desperdícios, e ó depois eu parei e ele veio por ali a fora (...) ''O que é que estavas a comer?'' E eu assim: ''Estava a comer um bocadinho de pão.'' ''Então mostra lá.'' Depois eu tirei, era cheio de pêlos (risos). E ele assim: ''Nunca faças isso, quando estiveres a comer, tu come, ninguém de ralha.'' E eu assim: ''Mas a gente não tinha ordem de comer'' (pág.127).»

quinta-feira, março 16, 2023

«A Voz das Mulheres», de Sarah Polley

 

Não cheguei a entender (mea culpa) se o filme, baseado em factos reais numa colónia evangélica na Bolívia, entre 2005 e 2009, onde várias mulheres eram sistematicamente violadas, tinha por objetivo a crítica implícita a toda a sociedade patriarcal ou só era explícito a violência particular daqueles actos concretos. Se assim foi, nesta segunda hipótese, é um filme consistente e atingiu os seus objetivos, se não, temos aqui metáforas não totalmente conseguidas: será possível transpor esta situação a toda uma sociedade oprimida? E se assim é, a solução entre fugir, ficar ou lutar, base de toda a discussão entre as mulheres violentadas, será a de fugir? Não me parece, se foi essa a mensagem da escritora canadiana Miriam Toews, uma solução inteiramente digna para quem apresenta uma possibilidade de liberdade da mulher. Ou de uma sociedade? 

sábado, março 11, 2023

«Breve História Mundial da Esquerda», Shlomo Sand

 

Zigurate, 2023. Tradução de Carlos Vaz Marques
Pode dizer-se que a leitura deste livro provoca um longo bocejo. Nada de novo no ar e a breve, não tão breve assim, descrição do que já todos sabemos é salteado, de vez em quando, com um azedume à esquerda impossível de o esconder. Aliás, para alimentar alguma confusão não há só uma página do livro em que não apareçam os termos «liberal», «liberais» ou «liberalismo», e isto não sendo inocente é associado a termos como «liberal de esquerda», «liberalismo esquerdista», «socialista liberal», «liberalização comunista», etc.,etc. Que o homem se tenha arrependido, mais tarde, em 1956, com a invasão da Hungria pelas tropas do Pacto de Varsóvia, que o pai o tenha inscrito nas Juventudes comunistas israelitas quando ainda era um jovem e sem estar sequer convicto, compreende-se. Mas tão tarde, caramba? É como o Carlos III chorar aos 50 anos que se casou com a Diana porque o pai o obrigou! Ou como os camaradas dos PC's descobrirem, em 1991 e ainda nos anos seguintes, que a URSS vivia uma ditadura!
Quando este autor não quer aclarar uma posição «sua» afirma solenemente que o fenómeno ainda não foi estudado suficientemente (por outros); assim se passa com a adesão dos jovens ao maoísmo na Europa, ou com o feminismo, ou com os jovens machos do Maio de 68 que eram servidos com café antes das manifestações ou durante as reuniões pelas suas colegas que exigiam libertação sexual. E que a conseguiam mas após servirem o café, confundindo liberdade sexual com assédio, balha-me nosso senhor! (página 221). 
Mas a «breve» descrição da esquerda mundial (não vai por menos!) tem alguns constrangimentos como, por exemplo, tentar defender que as ditaduras do Chile e da Argentina e as demais sul-americanas não se podem confundir com o fascismo ou nazismo por terem economias liberais, portanto prósperas. Tal como as de Salazar e Franco, retomando a sempre e estafada tese do conservadorismo católico de direita. Matar ou não matar fica para a esquerda que, segundo o senhor Sand, é sedenta de sangue e totalitarismo, mesmo que as descrições que faz dos massacres de militantes de esquerda em todo o mundo ocidental e colónias a ele adstritas provem exatamente o contrário. Foram aos milhões os revolucionários massacrados nos anos 50, 60 e 70 desde a Indonésia, Filipinas, Iraque ou no Paquistão. 
Quanto aos anarquistas, Shlomo Sand apresenta-se mais paternalista. Eram utópicos, antiautoritários, antimarxistas e, claro, defendiam sociedades «liberais». Não sei onde ele foi buscar isto de ver anarquistas liberais (talvez nos EUA, mas na Europa do século XIX?), mas acredito que tenha as suas fontes fidedignas. Sobre os anarquistas apresenta teses tão pobres que até mete dó. As omissões são imensas. 
Já com o nazismo ou o fascismo o seu capítulo «Camisas Negras ou Castanhas: direita ou esquerda?» diz tudo. Pela pergunta assim formulada escuso de falar muito mais sobre as suas conclusões.
Quanto a Lenine, quando chega da Finlândia a Moscovo, em 1917, e defende as suas Teses de Abril (sem que ele as denomine assim e faltem algumas dessas teses), diz que os princípios «Paz, Terra e Pão» foram «diabolicamente» eficazes. Diabolicamente a «Paz, Terra e Pão»? Outra questão é a de saber que palavra de ordem de Lenine foi esta «Todo o poder liberal aos Sovietes!» (página 126)? Como disse ao princípio deste texto, em cada página há a palavra «liberal», mas colocá-la assim junto aos sovietes? Mais outro «balha-me deus»! É isso e colocar o epíteto de «anarco-reformista» a Gandhi. Há limites para tudo, mesmo para a paciência de Gandhi.
Conclusões dos tempos que correm deixo-as para vós analisardes: «A aliança entre um poder político centralizador e uma economia de mercado, já experimentada com sucesso na Alemanha de Hitler, assumiu na China uma forma de simbiose original e surpreendente, desconhecida até então.» (pág. 160). E sobre a repressão e autoritarismo da Rússia de hoje vai desencantar  uma «ancestral tradição repressiva (dos czares)» tão relevante como o estalinismo, apontando o dedo aos historiadores que relevam para segundo plano o que ele em pouco tempo terá descoberto! Mais um dado não suficientemente aprofundado. Não fosse ele a avisar-nos!

quinta-feira, março 09, 2023

segunda-feira, março 06, 2023

«As Tábuas de Buxo de Apronenia Avitia», de Pascal Quignard

 

Cotovia, 1999, Tradução de Ernesto Sampaio
Pascal Quignard apresenta-nos um livro admirável baseado em pequenas memórias, recados, agendas, impressões de uma patrícia romana, Apronenia Avitia, que viveu no estertor do Império entre 343 e 414. Nestes folios recolhidos em 1604 pelo francês Fr. Juret, em Orriam, Pascal Quignard segue o seu roteiro literário de pequenos fragmentos que formam um todo percetível. Consegue-o de uma maneira magistral. 

Apronenia Avitia nasce em Roma em 343 e morre ao que se supõe aos 71 anos. Para alguma perplexidade de Pascal Quignard, Apronenia só muito por alto fala da queda do Império e da corrupção que lhe está inerente à vista de todos. As suas preocupações e registos são outros, embora ao que tudo indica tenha assistido aos cercos do chefe godo Alarico a Roma e se tenha refugiado numa das suas «villas» na Sicília também em devastação. Mas as suas impressões deixam-nos uma marca de uma época violenta e ao mesmo tempo terna, quase ingénua pela descoberta dos pequenos grandes prazeres do corpo, da sensibilidade pela natureza e também pela filosofia e pelo pensamento. Apronenia Avitia casa-se três vezes e tem sete filhos que lhe sobreviveram. Não escreve quase nada do seu primeiro marido embora soubéssemos que era rico e, como tal, patrício, tenha vivido com ele quase trinta anos e tenha tido os seus filhos com ele. Herdou e enviuvou duas vezes mais aumentando assim o seu pecúlio e riqueza não sem sobressaltos devido às expropriações cristãs de terrenos de patrícios pagãos que se dão em toda a Península Itálica, a partir do Édito de Milão e principalmente a partir de Teodósio. O cristianismo impunha-se com conversões oportunas desses patrícios, os seus «clientes» e juntamente com os escravos. Mais velha que Agostinho e Jerónimo vê sobrepor-se aos deuses romanos e ao pensamento a que hoje chamamos «clássico», a teologia cristã. Não aderiu, nem o seu círculo próximo de amigos e de senadores, ao cristianismo, embora amigas íntimas e alguns familiares por motivos políticos e de propriedade, o tenham feito.

Quando enviuvou pela primeira vez, uma amiga cristã de Apronenia, Anícia Proba, envia uma carta ao bispo Nasébio sobre os conselhos que a igreja lhe teria para dar quando aquela se preparava para se casar novamente. Conhecemos a carta, de 392, que lhe foi endereçada pelo bispo e ignorada olimpicamente pela patrícia:
«Tentarás reparar, na medida do possível, uma inocência manchada pelo prazer e pela idade, uma candura que o tempo, a maternidade e a sensualidade macularam. Pelo menos, procurarás restaurar em ti a nostalgia desse estado. Porás todo o cuidado em evitar armadilhas a que te expõem Roma, a comida, o gosto pelos livros profanos, os cuidados corporais, a riqueza, a proximidade da velhice e a autocomplacência que lhe é própria, a música e todas as artes. Purifica-te! Toma consciência da promiscuidade matrimonial! Deixa-te tocar pelo estado de Nosso Senhor, as virtudes da pobreza, o desprezo por esta terra e pela sociedade dos homens; deixa-te tocar pelo amor do Céu!» Apronenia não se deixou tocar, evidentemente.

Em 396 dá-se a separação do Império e, no Ocidente, começa-se a fúria destrutiva dos antigos deuses, pensamentos e conhecimentos pagãos. As estátuas eram destruídas e a expropriações revertiam para o espólio já enorme da igreja cristã. As violências sobre o «partido» pagão atingiam igualmente um ponto de não retorno. Volusianus, um senador do grupo do Monte Caelius e vagamente familiar de Apronenia enviou-lhe esta carta desesperada em 408, reproduzindo estas mesmas ideias (também por carta) por todo o Império. Dizia ele: «Desde que o cristianismo triunfara a vida perdera a alegria, as cidades, as vias, os templos, os teatros, as termas, deixadas ao abandono, alteravam-se e caíam lentamente aos bocados. Antes dos cristãos tomarem o poder, os livros eram mais bem escritos, a vida mais tranquila e feliz, mais radiosas e mais desejáveis, as moradias maiores e mais esplêndidas, a alegria mais contagiosa, a luz mais cintilante, os sons mais puros, o cheiro dos sexos mais exaltante e almiscarado; até as sardinhas  e as salsichas grelhadas tinham outro sabor. desde o édito de Honório, desde que perdera os seus deuses, com os Godos sempre presentes, Roma ficou desolada; o vinho tinha sido transformado em sangue, o pão em fogo e cinzas; os cantos e as pantominas tinham sido substituídos pelos gritos dos torturados; arte já não havia: apenas ruínas. (...)»

Alguns apontamentos de Apronenia Avitia nos pequenos buxos de cera escritos com estiletes de prata:

XXI. Coisas que dão um sentimento de paz
Gosto dos ruídos dos carros de Roma.
Dos banhos de sol nos terraços, ao entardecer.
Do sono pesado de um homem que gozou.
Dos colchões do Nilo.
Das estrelas, quando a madrugada pouco a pouco as apaga.
Detesto os velhos, ou pelo menos os que parecem sempre acompanhados pela morte.

XXXI. Descoberta
Não gosto de fazer amor durante a primeira sesta.

LVII. Alegrias da aurora
Gosto da aurora, das sombras roídas pela claridade.
Os telhados do parque tornam-se pouco a pouco visíveis.
O odor da noite, do suor e dos prazeres de que nos recordamos aos poucos, à medida que nos vamos despindo deles. Pouco a pouco a aparência retorna aos corpos, enquanto os vamos escondendo e maquilhando.
A água fresca sobre os olhos e na garganta.

LVIII. Litania de Spurius Possidius Barca
(...) - Houve um tempo em que eu não existia e houve um tempo em que tu não existias. Haverá talvez um tempo em que eu deixe de existir e tu existas, ou talvez um tempo em que tu não existas e eu exista. Serão sem dúvida os tempos mais tristes. Depois haverá um tempo em que ambos já não existiremos e nunca mais voltaremos a existir.
Enquanto ele falava, Spatalé repunha azeite nas candeias. Eu acariciava-lhe com o dedo as costas da mão, que tremia.

LXI. A pobrezinha de Lucianus
(...) ''Eu sou Lalagé Asdiga'', disse. ''O mar corrói as costas e forma baías. Tenho a boca e as nádegas das porcas. Fui bela. O tempo é um deus de água, de falésias que desabam, de areia. Tudo nos empurra, nos arrasta para a morte. Há muito tempo que o frutos dispostos na canastra tinham perdido o viço e fui repudiada. Amava Quintus e nos meus sonhos, por vezes, ainda o desejo.''

LXXXII. Os sinais da felicidade
Tais são os sinais da felicidade: uma fortuna herdada.
Uma linguagem precisa, o acento de quem não tem acento.
Um parque variado, com muitas sombras, acidentado e profundo.
Um corpo robusto.
Amigos dissemelhantes, loquazes, bons leitores, mas também convivas indulgentes e um pouco grosseiros.
O rosto de um homem cujos olhos revelam todas as emoções, tal como um espelho do Oriente.
Um sono de cinco horas desde que não seja interrompido.
A companhia de um homem que goste do prazer, isto é, da delicadeza do prazer.
Nas vezes da morte, um susto comedido.
Tomar banho.
O uso da lira.

XCVII. Dito de Spurius Possidius Barca
Depois da morte de Spurius não tenho pensado em nada. esta manhã, lembrei-me de uma coisa que me disse antes de entrar na agonia e que me comoveu:
- Não há outra vida. Nunca mais nos veremos.
As lágrimas corriam-nos pela cara. Apertámos a mão.

CXX. Moléstias dos olhos.
(...) Publius diz:
- Uma espécie de poeira invisível cai do sol, cheia de átomos. Nada consegue livrar-nos dela. Mete-se-nos na vista e torna-se cada vez mais espessa até à noite da morte.
Publius acrescenta:
- Essa poeira chama-se poeira.
Cala-se, depois acrescenta ainda:
- Ou então o nome dela é tempo.
Volta a calar-se, para acrescentar de novo:
- Ou então terra.
Cala-se mais uma vez, e por fim diz:
- Ou então o nome dessa poeira é ainda e sempre poeira. 
(...)

CXXXII. Coisas longas e coisas sem duração
Entre as coisas mais longas, acrescentaria a infância.
O arbusto do buxo.
Esperar por Aulus que está no gramático e já há uma hora que devia ter voltado.
A velhice.
A tartaruga do mar.
A morte daqueles que estão mortos.
A insónia.
A gralha.
Entre as coisas sem duração, não anotaste os deuses imortais e as obras irrepreensíveis.
Entre as coisas sem duração, o amor deve ser suprimido. Está para a espécie como o sexo ou as mamas que o acompanham e permitem a reprodução, mas não definem nada de propriamente humano.

A tradução de Ernesto Sampaio é uma mais valia considerável do livro. 

António Luís Catarino