Escrever sobre «Cinza», o primeiro livro de Rosa Oliveira, não é fácil, porque emoções são muitas, diga-se desde já. Os outros dois livros da poeta são «Tardio» e «Errático». Como os li, reli e o futuro dirá quantas vezes mais eu me debruçarei sobre esta poesia, pensando já quando estará nas livrarias o próximo livro, sinto-me perplexo sobre o que vou escrever. Não sou crítico, não sou académico. Sou um tipo que acompanhou desde sempre a poesia e gosta de falar dela com as emoções à flor da pele. É minha opinião que se deve lê-la assim. Falemos de emoções, então. Rosa Oliveira despreza a Razão e o Iluminismo que acho patente em vários poemas de «Cinza», mas claramente explícito em «Drôle de Guerre»: «porra!/ o ultra-racionalismo marxista deu-me cabo da vida!/ (e do engate).../ (...)» mesmo desconfiando que este anti-racionalismo de Rosa Oliveira seja baseado nas obras de Adorno e de Horkheimer cujo ataque à Razão, como sabemos, sustenta-se no seu próprio esgotamento sendo, sabemo-lo, responsável já por dois séculos, no mínimo, de anomia, estagnação utópica e imaginária e, mais cruamente, de massacres entre humanos. Os fascistas anti-racionalistas não esfreguem já as mãos de contentes. Também os há do lado libertário na denúncia da guerra «racional» como a que se passou em Verdun: «a batalha recomeçava no dia seguinte/ os homens não podiam morrer com calma/ não podiam recolher-se nas traseiras de algum prédio/ ou morrer encolhidos num beco/não havia altares para a discrição/ só lama e trincheiras infestadas/ era uma guerra entalada/ para ficar à espera e morrer diante de todos/ (...)» Portanto, a escolha do poema é óbvia na acusação da guerra que a Razão, solícita, bate, de tempos a tempos, à porta da humanidade.
Ainda mais claro, na crítica poética ao racionalismo, em «Elogio da mónada»: «uma velha vende água entre gemidos moribundos/ é isto o iluminismo/ um campo lamacento/ pejado de sangue/ onde pobres homens comuns morrem/ por imagens congeladas/ e nunca a realidade anunciando-se como um anjo (...)» Provavelmente, desde o racionalismo clássico com que Rosa Oliveira joga a «morte em open space»: Platão «dizem que era feio», Aristóteles «um janota», ou com «os gladiadores [que] desfilam interminavelmente/ pela via dell'abbondanza(...)». Clarificar-se-á a proposta da poeta no incandescente «a espuma dos dias» quando nos é apresentada a humanidade como «pequenos átomos friorentos/neutrões solitários(...)» que olham para trás e encontram os anjos da História de Walter Benjamim ou os olhos aterrados de «anjos vazios» de Klee e a que Heiner Müller deu voz.
Poesia dentro da poesia e de um elogio comovente, porque foi um dos mais belos que li a Ruy Belo em «as casas em espinho com ruy belo»; e é a vitória da emoção e da comoção que dá à poesia de Rosa Oliveira toda a coerência, mesmo que ela não seja chamada para aqui. E as viagens, as derivas erráticas (um pleonasmo meu, mas que já aponta para o título do seu terceiro livro), que nas linhas de «Cinza» se podem cruzar nos diversos espaços e no tempo em que se cose a morte e a vida. Em «across the universe» e em «estrela do norte» pressente-se essa viagem louca, inconcebível para o comum dos mortais, da luz de uma estrela «morta antes do nascimento da terra/ chegou até nós há seis meses. / Explodiu há 13 mil milhões de anos/ chegou ontem. (...)» Numa simples folha de papel branca, as linhas escritas por Rosa Oliveira dão-nos a percepção do incomensurável da sua própria poesia. Uma «alegoria da física» em conjunto com as palavras, a explosão necessária que sucede à leitura de «Cinzas».
Este livro é um perigo para os realistas, conformistas e sucedâneos e ainda bem que o é. No fundo, somos um «país minúsculo até no excremento» um sorriso terno ao surrealismo que Rosa Oliveira nos propõe «se não houver morfina, o que fazer?/ acreditar em deus derrepentemente/ aproveitar a noite e/ dar o salto do lince (...)». Quantos de nós, nascidos nos finais de 50 quiseram, ou experimentaram este salto de lince, por vezes caíndo estrepitosamente? Ou talvez um dia...
Rosa Oliveira está entre aqueles que só padecem do mal da poesia. São os paladinos da violência pela palavra e da beleza tão irónica, quanto limpa. Há muito poucos assim.
António Luís Catarino
Coimbra, 19 de Janeiro de 2022