domingo, janeiro 30, 2022

Relatórios situacionistas. Uma edição da «Barco Bêbado»

 

Esta edição extremamente cuidada da Barco Bêbado merece ser referida assim como o prefácio de Júlio Henriques. As ilustrações e colagens (à boa maneira situacionista) são de Francisco Rebolo, João Massano, Juliana Julieta, Massimo Nota, Miguel Ângelo Marques e Nunes da Rocha. O grafismo, a capa e a paginação ficaram a cargo de Paulo da Costa Domingos. O editor é Emanuel Cameira.

É relativamente fácil, hoje, procurar bibliografia honesta sobre a IS, fundada em 1959 e auto-dissolvida em 1972. Esta edição insere-se neste grupo. Mais difícil será que os textos e acções dos situacionistas sejam recuperados pela subcultura capitalista, visto que esta se alimenta das correntes revolucionárias artísticas e políticas que surgem e ressurgem ao longo dos tempos e que a alimenta. De todas as revistas que compõem os textos teóricos situacionistas esta edição foi bucar Guy Debord, Gilles Ivain e Mustapha Khayati. Júlio Henriques é autor de uma importante introdução em que se destaca a afirmação seguinte: «Essas exigências qualitativas [do corpo teórico da IS] - que se mantêm, sendo por isso que constituem uma arqueologia do presente - foram o resultado de sucessivas descobertas levadas a cabo no terreno da teoria e da prática, remontando às grandes conflagrações que puseram a nu o invariável despotismo  das relações sociais criadas pelo capitalismo mais modernizador e avançado, cuja incessante e predatória acumulação de riquezas impede estruturalmente, numa infamante contradição, uma vida decente no seio das classes de baixo, apesar da chamada elevação do seu nível de vida, em parte resultante duma maior amplitude dos lazeres - que nunca foram dados, mas sempre duramente conquistados.» (pág.8)

Alguém chamou à Internacional Situacionista a grande heresia revolucionária do século XX, deixando um rasto de inconformismo activo e uma bagagem teórica à espera ainda para ser superada como era a vontade dos seus fundadores. Eles que superaram Dádá, o Letrismo e o Surrealismo convidam-nos a uma constante observação dos movimentos ágeis da acumulação do dinheiro, do curso das mercadorias e da sua inutilidade. Depois temos a Vida reivindicada como único propósito dos que ainda têm a vontade e génio de se revoltarem. 

Neste livrinho de 90 páginas resume-se os principais pontos da IS a saber: a teoria da deriva («O acaso tem na deriva um papel tanto mais importante quanto mais se sinta inseguro o observador psicogeográfico.» pág. 64)», a decomposição e o desvio, o fim da arte e o renascer de uma vivência poética (no sentido situacionista do termo), a vida quotidiana, a emergência de um novo urbanismo, a criação de situações verdadeiramente irreversíveis, as «teses para uma revolução cultural» (A vitória caberá aos que tenham sabido fazer a desordem sem a amarem - Guy Debord, pág.62), Já se falou muito na contemporaneidade das teorias situacionistas, mas vale a pena determo-nos no que é afirmado, por exemplo, na IS nº10, de 1966, sobre a comunicação: «Que a linguagem seja, antes de mais nada, um meio de comunicação entre os homens, é coisa que a burocracia ignora. Visto toda a comunicação passar por ela, os homens já nem sequer têm necessidade de se falar: eles devem, acima de tudo, assumir o seu papel de receptores, na rede de comunicação informacionista a que está reduzida toda a sociedade, de receptores das ordens a executar.» (pág.83). Sublinhe-se: isto foi escrito em 1966!