A Deriva tem dado à estampa, numa colecção intitulada
Pulsar, dirigida e coordenada por Ana Luísa Amaral, Pedro Eiras e Rosa Maria
Martelo, alguns pequenos textos que visam reflectir o lugar e a função da
palavra escrita no mundo actual. Assim, depois de Para que serve a Literatura?
(Julho de 2010), de Antoine Compagnon (n. 1950), saiu Para que serve a Poesia
Hoje? ( Junho de 2011), de Jean-Claude Pinson (n. 1947). Pinson nasceu em
Nantes, estudou Letras na Sorbonne, acabando por formar-se em Filosofia sem nunca
ter abandonado a inclinação literária, nomeadamente através da prática dos
versos. O pequeno livro que agora nos chega com tradução de José Domingues de
Almeida está dividido em duas partes. Uma primeira parte mais teórica, composta
pelo texto de uma conferência proferida a 12 de Janeiro de 1999, e uma segunda
parte mais dialogante, com uma síntese do debate suscitado pela dita
conferência. As teses de Pinson, erigidas sobre o terreno fértil da obra de
Henri Michaux, enfermam de um vício ao qual raramente escapam obras do género,
o de começarem por reflectir um assunto pressupondo a necessidade dessa
reflexão. À pergunta Para Que Serve a Poesia Hoje? Nós podemos, desde logo,
juntar uma outra: para que servem hoje conferências e debates sobre a utilidade
da poesia? E mais esta: servirá hoje a poesia para alguma coisa que não tenha
já servido no passado? Estes problemas são tão mais urgentes quanto se torna
necessário entender se, de facto, a poesia alguma vez serviu para alguma coisa
ou se tem mesmo de servir para alguma coisa. Um pouco à semelhança da presunção
de um sentido para a vida, buscado, cavado, semeado, colhido no absurdo da
existência, também a utilidade de toda e qualquer actividade humana deverá ser
pensada em função do paradoxo suscitado pela prática do impraticável. Na
realidade, nada na vida pede sentido senão a própria perdição dos homens. Assim
como a vida não tem que ter sentido algum, também a poesia não tem que servir
para o que quer que seja. Não se trata de pretender fugir a uma questão
entusiasmante de um ponto de vista meramente académico e teórico, até porque o
texto de Pinson é assaz objectivo e procura sempre focar-se no essencial. No
entanto, resvala com frequência nos tiques academistas com que estas questões
são geralmente abordadas. Presume-se que a poesia não esteja na moda, algo que
a realidade actual desmente ao constatarmos a proliferação de sítios dedicados
ou atafulhados de poesia. Em certos circuitos de afirmação intelectual a poesia
chega a dar cartas, até porque, como Pinson sugere, é uma arte aparentemente
fácil e acessível. As limitações do público da poesia também já não são um dado
adquirido. Convém esclarecer quem é esse dito público, até porque poesia há de
vários tipos, modos e géneros, alguns tão populares e correntes que deixariam
os académicos de gabinete estupefactos. Recentemente, em Portugal, um grande
grupo editorial passou a distribuir uma das mais emblemáticas editoras de
poesia portuguesas. Isto aconteceu pouco depois do principal responsável por
esse grande grupo editorial ter decretado em entrevista pública a morte da
edição de poesia. Ora, não me parece que um homem de negócios pretenda pegar
num defunto só para ter o gozo de ser ele a enterrá-lo. Como é óbvio, a suposta
utilidade de uma arte não se afirma pelo interesse que suscita nas massas. Há
artes que nasceram para serem mediáticas, outras há que nunca almejaram senão
aquilo a que hoje se chamam fidelíssimos nichos de mercado. É verdade que há
mais poetas do que leitores de poesia, mas tenho alguma dificuldade em lamentar
essa realidade. A poesia terá uma dimensão terapêutica que não esgota as suas
funções, mas que de algum modo sublinha o carácter utilitário da sua
não-utilidade. Duvido que cure ou dê prazer, pelo menos não tanto quanto um bom
vinho ou a masturbação. Muitos dos melhores poetas suicidaram-se, levaram vidas
errantes, foram indigentes e execráveis, o que deixa dúvidas quanto às
dimensões curativas e saudáveis da poesia. Sem dúvida que desincha poderes,
alarga horizontes na exacta medida em que amplifica a linguagem, proporciona um
mundo melhor ou pior a quem com ela conviva no desleixo de si próprio e do
mundo. Não obstante, parece-me que ainda está para chegar o intelectual que
diga, sem parangonas, que a grande utilidade da poesia não diverge, no
essencial, da utilidade da Playstation, ou seja, ajuda a passar o tempo
proporcionando bons fogachos de tempo. Que também Pinson insista na balela
castradora e exclusivista da verdadeira poesia, como se a falsa pudesse sê-lo,
só peca a favor de um texto estimulante que nos agrada, sobretudo, pela sua
intrínseca inutilidade.
Henrique Fialho