Cada vez A Mobilização Global seguida de O Estado de Guerra, de Santiago López-Peti, faz mais sentido. Rui Pereira, tradutor do livro, deixa-nos comentários finais e marginais algumas pistas para pensar.
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O momento em que banqueiros, financeiros e políticos deles afins se interrogam na tertúlia televisiva sobre se o capitalismo terá «ruído» ou não…. O momento em que vozes das mais insuspeitadamente elevadas da Igreja católica exortam os seus fiéis a uma rebelião, pelo menos, do grau da protagonizada pelos apóstolos há dois mil anos: “Face aos pretensos senhores destes tempos […] o mínimo que podemos fazer é rebelar-nos com a mesma audácia dos Apóstolos», na formulação exacta que lhe deu o secretário de Estado do Vaticano, monsenhor Tarcísio Bertone, discursando em Fátima, em Outubro de 2007.
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O momento bizarro em que os neoliberais reclamam a “intervenção do Estado”. O momento em que os adeptos da “intervenção do Estado”, criticam os neoliberais reclamando a “intervenção do Estado”. O momento em que o espanto astrológico da constelação que uniu alta finança e baixa política, quando não desaparece sob o manto do falatório incessante nas televisões e nos jornais, aparece à sombra das grades carcerárias para alguns — escassos — bodes expiatórios aos quais, na aventura, tocou a sorte de pagarem por todos...
Podemos, neste momento, estar ou não estar de acordo com López-Petit. O que dificilmente poderemos é discordar da importância, da relevância crucial, da sua escrita para quantos, nas suas mil e uma formas, por vezes despercebidas, declinam a clássica questão da filosofi a e da ontologia, tal como no-la entrega, a grande economia de Jean Lefranc: O que é o Homem?, para lhe encontrarem, como resposta,não mais do que o seu tudo e o seu nada, ou seja, o Homem é aquele ser que se coloca uma questão sobre si mesmo: O que é o Homem?
Consciência de si e consciência de si na História, o homem, diz-se, é ele e a sua circunstância. Mas é, também, ele na sua contingência. Da circunstância à contingência vai a qualidade de um grau diferente de si. O grau reflexivo do ser Homem enquanto ser dotado de historicidade. Quer dizer, percepção de si mesmo perante a encruzilhada. A História dá-se à consciência sob a forma de um campo de possíveis. Isto é, irrupção da escolha e imperativo de acção.
Porém, o que López-Petit, em toda a sua generosa crueza, vem dizer-nos, é que há momentos em que a auto-comiseração e as tácticas e desvios condescendentes da boa consciência não bastam. Esse é o tempo em que a História nos demanda. Tempo sumamente difícil, portanto. Em que temos de mastigar a comida, ao contrário do velho hábito de a deglutirmos já mastigada: — pelo rei, pelo presidente, pelo revolucionário, pelo juiz, pelo sábio, pela telenovela e pelo filósofo, pelo cura ou pelo ideólogo, pelo polícia, pelo plural mal simulado da televisão e do jornal, pelas fitas de série B e pelos futebolistas, pelos vídeo-jogos tanto quanto pelas imagens da morte rotineira no mundo pobre ou pelas suas homólogas do trivial fait-divers onanista do jet-set no mundo rico, mundo, este, felizmente, aquele a que pertencemos, bem seja pelos laços iridescentes do sangue legítimo, mal seja pelos elos deserdados da bastardia.
in A Mobilização Global seguida de O Estado de Guerra de Santiago López-Petit (trad. e notas de Rui Pereira) (pg. 210 e ss.)