Já se encontra no prelo esta experiência de Nuno Barros, que pintou, e Pedro Eiras que escreveu. Dessa experiência, nasceu Arrastar Tinta que agora publicamos e que será apresentado na FNAC de Sta. Catarina, no dia 10 de Dezembro, pelas 18:00 (mais minuto, menos minuto). Quem o apresenta é Helena Lopes.
sábado, novembro 29, 2008
sexta-feira, novembro 28, 2008
Maria de Lurdes Rodrigues e Largo Caballero, a mesma luta
Tive hoje uma certeza: a Largo Caballero já não lhe pesará muito o anátema de ser o primeiro e único anarquista a pertencer a um governo. Naquele caso o governo da Frente Popular espanhola de 1936 e não importa que fosse ou não democrático, se eleito, se nomeado, com autorização da CNT-FAI ou sem ela, que não será isso que virá hoje ao caso. Para a história ficou a de um governo legítimo que perdeu com Franco, o golpista. Hoje, Caballero dividirá este anátema com Maria de Lurdes Rodrigues, que em entrevista ao P2 do Público de hoje (28/11) diz sentir-se ainda anarquista (só nos valores e nos princípios). Relembra, com alguma nostalgia, os sábados e domingos que passava a colar selos nas cartas da Revista Ideia e a embrulhar o jornal A Batalha. Tardes onde não seria preciso pensar muito e onde se repetiam os gestos mecânicos. Vale a pena ler este artigo. Nunca me seduziu a personagem, mas é incrível como não consegue fazer valer uma só ideia sobre educação que a tivesse norteado nesta deriva autoritária contra tudo e todos. Percebe-se o afã quando deixa escorregar uma frase assassina sobre as reformas: que se diz que não se podem fazer contra os seus profissionais, mas, diz ela, a história ensina-lhe que pode fazer sem eles. Assim se compreende a ministra anarquista, muito pouco dada ao pensamento socrático ou, parece-me, a qualquer outro... ah, aquelas tardes de sábado e domingo a colar selos e a empacotar jornais! E, hoje, também me apetece ser monárquico - Viva, pois, o Rei Ubu!
Os Três Desejos de Octávio C, romance de Pedro Eiras apresentado hoje
Na Biblioteca Florbela Espanca, em Matosinhos, hoje dia 28 de Novembro, pelas 21:30, vai falar-se com Luís Mourão e com o autor sobre Os Três Desejos de Octávio C, editado pela Relógio d' Água. Não valerá muito a pena dizê-lo, porque isto da boa leitura terá as suas subjectividades, mas que se lê agradavelmente de um fôlego, lá isso lê-se... se isso não é prazer da leitura, então não sei o que isso será.
quarta-feira, novembro 19, 2008
Do Livro à Cena - as Actas dos XIII Encontros Luso-Galaico-Franceses publicados pela Deriva, Já disponíveis
DO LIVRO À CENA de Isabel Mociño González, Marta Neira Rodríguez, Ana Margarida Ramos e Sara Reis da Silva
Neste volume reúnem-se os trabalhos apresentados nos XIII Encontros Luso-Galaico-Franceses do Livro Infantil e Juvenil, realizados na Biblioteca Municipal de Almeida Garrett, no Porto, entre os dias 15 e 17 de Novembro de 2007. Sob o tema Do Livro à Cena, vários especialistas, oriundos de diferentes realidades culturais e linguísticas, reflectiram sobre o texto dramático para a infância e juventude, dando, igualmente relevo à sua concretização em espectáculo teatral. A publicação em livro das ideias
partilhadas durante os dias dos Encontros surge como uma forma de estimular o interesse pelo teatro para a infância, mantendo viva a reflexão sobre uma prática que merece atenção dos investigadores e do público em geral.
Neste volume reúnem-se os trabalhos apresentados nos XIII Encontros Luso-Galaico-Franceses do Livro Infantil e Juvenil, realizados na Biblioteca Municipal de Almeida Garrett, no Porto, entre os dias 15 e 17 de Novembro de 2007. Sob o tema Do Livro à Cena, vários especialistas, oriundos de diferentes realidades culturais e linguísticas, reflectiram sobre o texto dramático para a infância e juventude, dando, igualmente relevo à sua concretização em espectáculo teatral. A publicação em livro das ideias
partilhadas durante os dias dos Encontros surge como uma forma de estimular o interesse pelo teatro para a infância, mantendo viva a reflexão sobre uma prática que merece atenção dos investigadores e do público em geral.
Uma Boca muito Aberta, de Luís Maffei, sobre A Metamorfose das Plantas dos Pés de Catarina Nunes de Almeida. artigo editado na revista A Pequena Morte
Luis Maffei é poeta e professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal Fluminense e screveu este arigo na revista A Pequena Morte.
(recensão a A metamorfose das plantas dos pés, de Catarina Nunes de Almeida. Porto: Deriva, 2008):
A metamorfose das plantas dos pés exige a quem sobre ele escreve estar “dentro dentro dentro” [1], assim, muitas vezes por intensidade, como leio na tradução/ mudança de Herberto Helder a “Sobre tradução de poesia”, poema do polonês Zbigniew Herbert. Portanto, deixa de ser uma escrita sobre para ser uma escrita em, e o livro é provocativo desde o estranho poema-dedicatória que o abre: “Ao Vesúvio/ que me engoliu” (p. 6). O vulcão é um lugar de estar, e vejo-me, pois, diante da necessidade de também ser metido nele, engolido, exposto a sua boca muito aberta, ainda mais se leio, já pelo fim do livro, que “A neve no cume do vulcão concede ao fogo/ o rosto das amendoeiras” (p. 46). Existe uma iniciação a ser cumprida, pelo mundo, no mundo.
Cria-se, imediatamente, uma estória, uma trilha, um caminho, uma epígrafe de parceria: “Guarda-te melhor/ guarda-te caminhante/ do caminho que também caminha” (p. 7), Rilke. Se assim, abro da mesma forma a minha boca, abro os olhos à minha própria estória, faço minha a escrita dessa obra que, como uma senda, possui capítulos: o I tem título idêntico ao do livro; o II se chama “Corpo floresta” e o III, “A descoberta do fogo”. Desconfio que exista uma tarefa para o leitor: a de tornar-se capaz de III porque terá sido capaz de II, e o ato metamórfico da transformação do “corpo” em outro terá que respeitar o mesmo: agregação, não substituição. E “fogo” nas mãos, enfim, “fogo” na “floresta”, incêndio, amor ainda é um fogo, a “neve” vive no “vulcão”, caldeia-se, queima as plantas dos pés.
“Reconheces esta água para onde cais?” (p. 11), primeiro verso do primeiro poema de “A metamorfose das plantas dos pés”: amor ainda é um fogo, amor ainda é capaz de um “rendilhado de luas maternas”, de “todas as conchas”, de “todas as coxas celebradas” (p. 11). Caminhar com Catarina é caminhar de mãos dadas, pois a boca que fala convida a um dueto que se manifesta no assombroso, por complexo, erotismo dos poemas. “O álbum abriu a boca enorme”, numa modificação extrema do mundo, “e repara no perfume dos ossos/ como se as fotos continuassem lá longe/ debaixo da terra (…)” (p. 12): algum luto nessa memória um tanto familiar. Mas “coxas” são lugar de passagem e paisagem, “as unhas que outros cravaram pelas coxas” (p. 47), “e as vozes recolhiam-se sempre mais até serem/ um fio de prado um horto de lutos cristalizados: da marcha líquida dos soldados/ bebem as aves e as aveleiras” (p. 48).
É flagrante a fusão entre corpo e paisagem, corpo e mundo, lugares de tangência e encontro, encontros, fusão. Insisto na boca do canto, muito aberta: “Avistei a boca ao entardecer” (p. 14), e insisto na fusão: “Plantei o primeiro seio/ a que chamámos macieira/ e abandonei o ventre/ à generosidade vegetal./ Nessa noite dormimos por dentro e por fora/ do mundo.” (p. 14). Sim, exposta está uma relação, uma mistura: maternidade, eu, outro, nós, corpo, mundo. A natureza, aqui, é lugar de “generosidade”, mas a natureza reside nos corpos que, generosamente, fazem do mundo uma convidativa cama.
Se o corpo é natural, capaz de ser “Corpo floresta”, ele não deixa de ser da cultura, e culturaliza, de modo agudamente pessoal, a sorte de “Vesúvio/ que” o “engoliu”: “Tantas vezes se falou de origens vulcânicas/ e no entanto era nosso destino adiar o fogo/ compor hinos às árvores decepadas” (p. 15). Um gesto de feminização do mundo, ainda mais notável no último poema do livro: “Os homens desaguaram dentro dos homens/ bailarinas alinhadas para o primeiro acto de amor./ Só o amor cheira a sangue só as cigarras/ o perfume das espadas na ossatura dos campos/ completam a primavera na vala comum.” (p. 48). Homens “desaguaram” noutros “bailarinas”, e delas imitaram o gesto e o viço. E “na vala comum” a “primavera”, uma tensão entre certa ecologia política e certa ecografia, cultura a naturalizar o discurso da boca muito aberta de Catarina Nunes de Almeida, que compõe “hinos”, faz poemas.
E uma terceira pessoa é romanceada nesse livro de poemas, metamórfico como as tranformantes “plantas dos pés” que passeiam por seu título: “Deixou-se ficar ao sol – a língua iluminada/ polida pelo vento e as ruínas da folha onde foram/ um joelho um braço rasgando as nuvens.” (p. 26): é na escrita que se dá o erotismo nesses poemas, o que me faz pensar imediatamente em Luiza Neto Jorge, amante da “folha” como lugar de texto e corpo, dona de “língua iluminada” para atos eróticos em cantos e recantos. Claro, é possível detectar muita poesia portuguesa (e não só: atenção ao Rilke da epígrafe) em A metamorfose das plantas dos pés; Fiama, por exemplo, na lida com o que seja natural, na concisão e na “Ave severa esta árvore que embala a morte.” (p. 26): se “Água” ainda “significa ave” [2], vejo-me diante não apenas dum modo de reinventar a metáfora, mas dum tipo de significação a que interessa o encontro do diverso. Pela diferença, a tangência, e, na tangência, ainda uma grande novidade.
Novidade no corpo, do corpo, “Corpo floresta” capaz d’ “A descoberta do fogo”, da prática de um amor aprendiz que tem no poema seu lugar de iniciação: “Vieste para a floresta carregado de dedos/ como quem vem abraçar por dentro/ uma árvore o bicho que cai/ entre sílabas e âncoras minúsculas./ Estás pousado na terra/ mas são as ervas que se deitam no teu dorso constelado/ e aguardam o correr das nuvens/ a respiração de algum astro mais brando.” (p. 38). Deliro nas preposições: “de dedos”, não por dedos; talvez, portanto, como dedos, extremidade, sim, do corpo, tangência, tangência sempre. Se “por dentro/ uma árvore”, entra-se nela e por ela é-se entrado, e os “homens desaguaram dentro dos homens” pois se trata, enfim, do humano. E aqui suspeito (invento? Caso sim, peço desculpas, mas, como vou de mãos dadas a Catarina, é efeito de leitura, é coisa, antes de mais, dela) duma nova metamorfose, espantosa: é estelar e cósmico “algum astro mais brando”, com manifestação direta na “respiração” de homens e mulheres, sobretudo se amantes. Mas, sendo do uso da língua referir-se a grandes nomes com o vocábulo “astro”, e se “brando” é o nome de um grande nome, penso no estadunidense milagre humano que atende pelo nome de Marlon Brando, “astro”, em algum nível, cujo corpo se pode acessar pelo símbolo, pelo drama, pelo fingimento.
Pessoa, pois: num poema celebração do incêndio, celebra-se Nero – “Bendito sejas tu, Nero, entre os pássaros”. Celebra-se também Ricardo Reis, não pelo que foi, mas pelo que poderia ter sido: “desenlacemos as mãos, Lídia,/ lancemos estas mãos ao mar –/ alguém cumprirá por nós/ as promessas.” (p. 39). Serão “promessas” não cumpridas de amor vívido e vivido? Catarina leitora também de Adília Lopes – “casa-te com Lídia/ tem bebés/ passa a lua-de-mel/ na Grécia” [3] –? Talvez eu possa pensar nos “bebés”, nos filhos como cumpridores da fogosa promessa que une o Ricardo Reis de Catarina a essa nova Lídia, pois uma figura forte de A metamorfose das plantas dos pés é a mãe: “e tu tremias quando te chamava/ mãe.” (p. 17). Encerro a citar um poema que se encontra longe do fim da obra, e percebo que o caminho inventado por esse livro com capítulos não é de direção única: como uma boca muito aberta, as trilhas dessas falas têm diversos sentidos, cá e lá, para frente e para trás, sem que jamais alguma paralisia ouse mostrar-se.
NOTAS
[1] HELDER, Herberto. Oulof. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997. p, 10.[2] BRANDÃO, Fiama Hasse Pais. Morfismos. In. BRANDÃO, Fiama Hasse Pais et. alli. Poesia 61. Lisboa, Edição de autor, 1961. p. 1.[3] LOPES, Adília. Obra. Lisboa: Mariposa Azul, 2000. p. 387.
A metamorfose das plantas dos pés exige a quem sobre ele escreve estar “dentro dentro dentro” [1], assim, muitas vezes por intensidade, como leio na tradução/ mudança de Herberto Helder a “Sobre tradução de poesia”, poema do polonês Zbigniew Herbert. Portanto, deixa de ser uma escrita sobre para ser uma escrita em, e o livro é provocativo desde o estranho poema-dedicatória que o abre: “Ao Vesúvio/ que me engoliu” (p. 6). O vulcão é um lugar de estar, e vejo-me, pois, diante da necessidade de também ser metido nele, engolido, exposto a sua boca muito aberta, ainda mais se leio, já pelo fim do livro, que “A neve no cume do vulcão concede ao fogo/ o rosto das amendoeiras” (p. 46). Existe uma iniciação a ser cumprida, pelo mundo, no mundo.
Cria-se, imediatamente, uma estória, uma trilha, um caminho, uma epígrafe de parceria: “Guarda-te melhor/ guarda-te caminhante/ do caminho que também caminha” (p. 7), Rilke. Se assim, abro da mesma forma a minha boca, abro os olhos à minha própria estória, faço minha a escrita dessa obra que, como uma senda, possui capítulos: o I tem título idêntico ao do livro; o II se chama “Corpo floresta” e o III, “A descoberta do fogo”. Desconfio que exista uma tarefa para o leitor: a de tornar-se capaz de III porque terá sido capaz de II, e o ato metamórfico da transformação do “corpo” em outro terá que respeitar o mesmo: agregação, não substituição. E “fogo” nas mãos, enfim, “fogo” na “floresta”, incêndio, amor ainda é um fogo, a “neve” vive no “vulcão”, caldeia-se, queima as plantas dos pés.
“Reconheces esta água para onde cais?” (p. 11), primeiro verso do primeiro poema de “A metamorfose das plantas dos pés”: amor ainda é um fogo, amor ainda é capaz de um “rendilhado de luas maternas”, de “todas as conchas”, de “todas as coxas celebradas” (p. 11). Caminhar com Catarina é caminhar de mãos dadas, pois a boca que fala convida a um dueto que se manifesta no assombroso, por complexo, erotismo dos poemas. “O álbum abriu a boca enorme”, numa modificação extrema do mundo, “e repara no perfume dos ossos/ como se as fotos continuassem lá longe/ debaixo da terra (…)” (p. 12): algum luto nessa memória um tanto familiar. Mas “coxas” são lugar de passagem e paisagem, “as unhas que outros cravaram pelas coxas” (p. 47), “e as vozes recolhiam-se sempre mais até serem/ um fio de prado um horto de lutos cristalizados: da marcha líquida dos soldados/ bebem as aves e as aveleiras” (p. 48).
É flagrante a fusão entre corpo e paisagem, corpo e mundo, lugares de tangência e encontro, encontros, fusão. Insisto na boca do canto, muito aberta: “Avistei a boca ao entardecer” (p. 14), e insisto na fusão: “Plantei o primeiro seio/ a que chamámos macieira/ e abandonei o ventre/ à generosidade vegetal./ Nessa noite dormimos por dentro e por fora/ do mundo.” (p. 14). Sim, exposta está uma relação, uma mistura: maternidade, eu, outro, nós, corpo, mundo. A natureza, aqui, é lugar de “generosidade”, mas a natureza reside nos corpos que, generosamente, fazem do mundo uma convidativa cama.
Se o corpo é natural, capaz de ser “Corpo floresta”, ele não deixa de ser da cultura, e culturaliza, de modo agudamente pessoal, a sorte de “Vesúvio/ que” o “engoliu”: “Tantas vezes se falou de origens vulcânicas/ e no entanto era nosso destino adiar o fogo/ compor hinos às árvores decepadas” (p. 15). Um gesto de feminização do mundo, ainda mais notável no último poema do livro: “Os homens desaguaram dentro dos homens/ bailarinas alinhadas para o primeiro acto de amor./ Só o amor cheira a sangue só as cigarras/ o perfume das espadas na ossatura dos campos/ completam a primavera na vala comum.” (p. 48). Homens “desaguaram” noutros “bailarinas”, e delas imitaram o gesto e o viço. E “na vala comum” a “primavera”, uma tensão entre certa ecologia política e certa ecografia, cultura a naturalizar o discurso da boca muito aberta de Catarina Nunes de Almeida, que compõe “hinos”, faz poemas.
E uma terceira pessoa é romanceada nesse livro de poemas, metamórfico como as tranformantes “plantas dos pés” que passeiam por seu título: “Deixou-se ficar ao sol – a língua iluminada/ polida pelo vento e as ruínas da folha onde foram/ um joelho um braço rasgando as nuvens.” (p. 26): é na escrita que se dá o erotismo nesses poemas, o que me faz pensar imediatamente em Luiza Neto Jorge, amante da “folha” como lugar de texto e corpo, dona de “língua iluminada” para atos eróticos em cantos e recantos. Claro, é possível detectar muita poesia portuguesa (e não só: atenção ao Rilke da epígrafe) em A metamorfose das plantas dos pés; Fiama, por exemplo, na lida com o que seja natural, na concisão e na “Ave severa esta árvore que embala a morte.” (p. 26): se “Água” ainda “significa ave” [2], vejo-me diante não apenas dum modo de reinventar a metáfora, mas dum tipo de significação a que interessa o encontro do diverso. Pela diferença, a tangência, e, na tangência, ainda uma grande novidade.
Novidade no corpo, do corpo, “Corpo floresta” capaz d’ “A descoberta do fogo”, da prática de um amor aprendiz que tem no poema seu lugar de iniciação: “Vieste para a floresta carregado de dedos/ como quem vem abraçar por dentro/ uma árvore o bicho que cai/ entre sílabas e âncoras minúsculas./ Estás pousado na terra/ mas são as ervas que se deitam no teu dorso constelado/ e aguardam o correr das nuvens/ a respiração de algum astro mais brando.” (p. 38). Deliro nas preposições: “de dedos”, não por dedos; talvez, portanto, como dedos, extremidade, sim, do corpo, tangência, tangência sempre. Se “por dentro/ uma árvore”, entra-se nela e por ela é-se entrado, e os “homens desaguaram dentro dos homens” pois se trata, enfim, do humano. E aqui suspeito (invento? Caso sim, peço desculpas, mas, como vou de mãos dadas a Catarina, é efeito de leitura, é coisa, antes de mais, dela) duma nova metamorfose, espantosa: é estelar e cósmico “algum astro mais brando”, com manifestação direta na “respiração” de homens e mulheres, sobretudo se amantes. Mas, sendo do uso da língua referir-se a grandes nomes com o vocábulo “astro”, e se “brando” é o nome de um grande nome, penso no estadunidense milagre humano que atende pelo nome de Marlon Brando, “astro”, em algum nível, cujo corpo se pode acessar pelo símbolo, pelo drama, pelo fingimento.
Pessoa, pois: num poema celebração do incêndio, celebra-se Nero – “Bendito sejas tu, Nero, entre os pássaros”. Celebra-se também Ricardo Reis, não pelo que foi, mas pelo que poderia ter sido: “desenlacemos as mãos, Lídia,/ lancemos estas mãos ao mar –/ alguém cumprirá por nós/ as promessas.” (p. 39). Serão “promessas” não cumpridas de amor vívido e vivido? Catarina leitora também de Adília Lopes – “casa-te com Lídia/ tem bebés/ passa a lua-de-mel/ na Grécia” [3] –? Talvez eu possa pensar nos “bebés”, nos filhos como cumpridores da fogosa promessa que une o Ricardo Reis de Catarina a essa nova Lídia, pois uma figura forte de A metamorfose das plantas dos pés é a mãe: “e tu tremias quando te chamava/ mãe.” (p. 17). Encerro a citar um poema que se encontra longe do fim da obra, e percebo que o caminho inventado por esse livro com capítulos não é de direção única: como uma boca muito aberta, as trilhas dessas falas têm diversos sentidos, cá e lá, para frente e para trás, sem que jamais alguma paralisia ouse mostrar-se.
NOTAS
[1] HELDER, Herberto. Oulof. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997. p, 10.[2] BRANDÃO, Fiama Hasse Pais. Morfismos. In. BRANDÃO, Fiama Hasse Pais et. alli. Poesia 61. Lisboa, Edição de autor, 1961. p. 1.[3] LOPES, Adília. Obra. Lisboa: Mariposa Azul, 2000. p. 387.
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Cimeira do G-20 - O capitalismo faz milagres, de Santiago Alba Rico
Santiago Alba Rico é um filósofo espanhol que vive na Tunísia, onde ensina na Universidade. Escreveu o livro colectivo publicado um mês depois do 11 de Março de 2003 em Madrid, "Três dias que enganaram o mundo".
de Rebelión, 16-11-2008
O capitalismo é isto: um homem magro pede pão e recebe dez frangos um homem gordo; uma criança doente pede uma vacina e dobram a ração de vitaminas a uma criança sã; uma mulher com frio fica sem casa e entregam três edifícios mais ao senhorio. Há três dias, a edição digital do «El Mundo» (13.11.2008) publicava o seguinte título; «Solbes admite que as famílias ‘notam pouco’ as ajudas à Banca» [“Solbes admite que las familias `notan poco´ las ayudas a la banca”].
O diabólico deste título —e desta declaração— é que o seu simples enunciado converte a ordem lógica das coisas numa contingência inesperada e incompreensível: Sim, ‘confesso’ que o mar se tornou líquido ou ‘reconheço’ que a neve não é preta, a liquidez e a brancura apresentam-se aos nossos olhos contra todas as previsões, contra o bom senso e —mais ainda— contra as regras.
As palavras de Solbes obrigam-nos a dar por adquiridos precisamente os dois princípios que a sua concessão vinha negar; o primeiro é que o normal, o lógico, o natural seria que as ajudas à banca beneficiassem as famílias, como o normal, o lógico e o natural é que se eu atiro moedas de chocolate sobre Paris, elas caiam no Alaska, ou se rego o meu jardim em Salamanca cresçam rosas no Djibuti; o segundo é que o verdadeiro propósito do governo tenha sido sempre o de ajudar as famílias, como o verdadeiro propósito de um marido infiel, quando acaricia a sua amante é proporcionar um orgasmo à sua mulher, ou o verdadeiro propósito de um prevaricador, quando desculpa o assassino seja o de homenagear a sua vítima.
Em tempos, o Rebelión tinha uma subsecção denominada: «Outro título é possível». A surpresa e a contrariedade de Solbes, perante a inesperada, inexplicável, irregular e anti-natural insensibilidade das famílias, que não notam o orgasmo dos bancos, revelam melhor toda a sua obscenidade à luz de outros títulos que me ocorrem ao correr da pena
“Solbes admite que o que os hóspedes do Hilton comem não alimenta os africanos”
“Solbes admite que o aumento de carros na Europa não ajudou os mecânicos do Haiti”
“Solbes admite que no jacuzzi de Emílio Botín não cabem 4.200 milhões de pessoas”
Ou o fluxo empático negativo:
“Solbes admite que o tsunami da Indonésia não afectou a costa espanhola”
“Solbes admite que os corpos dos nova-iorquinos sentem pouco as torturas em Abu Ghraib”
“Solbes admite que a escassez de água em muitas regiões de África não se fez sentir nas piscinas de Alicante”
Seria um milagre, que o menu da cimeira de Washinton engordasse os 950 milhões de esfomeados de todo o planeta. Que a dor dos iraquianos, dos palestinianos, dos afegãos, dos haitianos, dos congoleses doesse ao mundo inteiro, seria justo e humano. O capitalismo pretendeu fazer magia: que alguns comêssemos, bebêssemos, consumíssemos, nos divertíssemos e todos em toda a parte ficassem contentes. O que conseguiu, pelo contrário foi mais isto: que a maioria passe fome e sede, viva pouco, adoeça e sofra e que nós não sintamos nada.
Mas, vendo melhor, sim, as famílias europeias começam a notar as ajudas aos bancos, como as notam desde há décadas no Terceiro Mundo. Para o prevenir, os 22 países mais poderosos do planeta reuniram-se a comer codorniz fumada e a tomar algumas medidas partilhadas para poderem continuar com a magia e os milagres e para que —se for esse o caso — reprimir os blasfemos incrédulos que, apesar das carnes do Hilton, do «green» bem regado dos campos de golfe e da alegria dos banqueiros insistam em conservar um corpo faminto, sedento e dorido.
Também me ocorre outro título possível, para outro mundo possível: ‘O G-191 reúne-se para coordenar o socialismo do século XXI’. Se a ONU tivesse algum poder, todos os enormes recursos, todos os extraordinários esforços colectivos, todas as instituições internacionais que hoje dedicam o seu tempo e o seu saber a cogitar milagres assassinos não serviriam para impor algum terreno e profano realismo? O que a cimeira do G-20 demonstra é que a coordenação internacional, a cooperação entre Estados, a planificação global são possíveis e funcionam- O que demonstra é que até agora a coordenação internacional, a cooperação entre Estados e a planificação global apenas serviram para inventar complicadíssimos procedimentos destinados a dar de comer ao saciado, robustecer o curado, consolar o ditoso, socorrer o rico, armar o injusto e libertar o homicida. Também, bem entendido, para impedir qualquer resistência contra estes mandamentos.
«O capitalismo não é o culpado», diz Bush. A única coisa que sabemos, porém, é que a culpa não é da União Soviética. Fracassou o socialismo? Nem sequer se tentou.
de Rebelión, 16-11-2008
O capitalismo é isto: um homem magro pede pão e recebe dez frangos um homem gordo; uma criança doente pede uma vacina e dobram a ração de vitaminas a uma criança sã; uma mulher com frio fica sem casa e entregam três edifícios mais ao senhorio. Há três dias, a edição digital do «El Mundo» (13.11.2008) publicava o seguinte título; «Solbes admite que as famílias ‘notam pouco’ as ajudas à Banca» [“Solbes admite que las familias `notan poco´ las ayudas a la banca”].
O diabólico deste título —e desta declaração— é que o seu simples enunciado converte a ordem lógica das coisas numa contingência inesperada e incompreensível: Sim, ‘confesso’ que o mar se tornou líquido ou ‘reconheço’ que a neve não é preta, a liquidez e a brancura apresentam-se aos nossos olhos contra todas as previsões, contra o bom senso e —mais ainda— contra as regras.
As palavras de Solbes obrigam-nos a dar por adquiridos precisamente os dois princípios que a sua concessão vinha negar; o primeiro é que o normal, o lógico, o natural seria que as ajudas à banca beneficiassem as famílias, como o normal, o lógico e o natural é que se eu atiro moedas de chocolate sobre Paris, elas caiam no Alaska, ou se rego o meu jardim em Salamanca cresçam rosas no Djibuti; o segundo é que o verdadeiro propósito do governo tenha sido sempre o de ajudar as famílias, como o verdadeiro propósito de um marido infiel, quando acaricia a sua amante é proporcionar um orgasmo à sua mulher, ou o verdadeiro propósito de um prevaricador, quando desculpa o assassino seja o de homenagear a sua vítima.
Em tempos, o Rebelión tinha uma subsecção denominada: «Outro título é possível». A surpresa e a contrariedade de Solbes, perante a inesperada, inexplicável, irregular e anti-natural insensibilidade das famílias, que não notam o orgasmo dos bancos, revelam melhor toda a sua obscenidade à luz de outros títulos que me ocorrem ao correr da pena
“Solbes admite que o que os hóspedes do Hilton comem não alimenta os africanos”
“Solbes admite que o aumento de carros na Europa não ajudou os mecânicos do Haiti”
“Solbes admite que no jacuzzi de Emílio Botín não cabem 4.200 milhões de pessoas”
Ou o fluxo empático negativo:
“Solbes admite que o tsunami da Indonésia não afectou a costa espanhola”
“Solbes admite que os corpos dos nova-iorquinos sentem pouco as torturas em Abu Ghraib”
“Solbes admite que a escassez de água em muitas regiões de África não se fez sentir nas piscinas de Alicante”
Seria um milagre, que o menu da cimeira de Washinton engordasse os 950 milhões de esfomeados de todo o planeta. Que a dor dos iraquianos, dos palestinianos, dos afegãos, dos haitianos, dos congoleses doesse ao mundo inteiro, seria justo e humano. O capitalismo pretendeu fazer magia: que alguns comêssemos, bebêssemos, consumíssemos, nos divertíssemos e todos em toda a parte ficassem contentes. O que conseguiu, pelo contrário foi mais isto: que a maioria passe fome e sede, viva pouco, adoeça e sofra e que nós não sintamos nada.
Mas, vendo melhor, sim, as famílias europeias começam a notar as ajudas aos bancos, como as notam desde há décadas no Terceiro Mundo. Para o prevenir, os 22 países mais poderosos do planeta reuniram-se a comer codorniz fumada e a tomar algumas medidas partilhadas para poderem continuar com a magia e os milagres e para que —se for esse o caso — reprimir os blasfemos incrédulos que, apesar das carnes do Hilton, do «green» bem regado dos campos de golfe e da alegria dos banqueiros insistam em conservar um corpo faminto, sedento e dorido.
Também me ocorre outro título possível, para outro mundo possível: ‘O G-191 reúne-se para coordenar o socialismo do século XXI’. Se a ONU tivesse algum poder, todos os enormes recursos, todos os extraordinários esforços colectivos, todas as instituições internacionais que hoje dedicam o seu tempo e o seu saber a cogitar milagres assassinos não serviriam para impor algum terreno e profano realismo? O que a cimeira do G-20 demonstra é que a coordenação internacional, a cooperação entre Estados, a planificação global são possíveis e funcionam- O que demonstra é que até agora a coordenação internacional, a cooperação entre Estados e a planificação global apenas serviram para inventar complicadíssimos procedimentos destinados a dar de comer ao saciado, robustecer o curado, consolar o ditoso, socorrer o rico, armar o injusto e libertar o homicida. Também, bem entendido, para impedir qualquer resistência contra estes mandamentos.
«O capitalismo não é o culpado», diz Bush. A única coisa que sabemos, porém, é que a culpa não é da União Soviética. Fracassou o socialismo? Nem sequer se tentou.
segunda-feira, novembro 03, 2008
Miguel Carvalho e Rui Pereira na apresentação/debate sobre a Intoxicação Linguística. Sábado, 8 de Nov, 21h. Bar Uptown, Porto
Sábado, dia 8 de Novembro, pelas 21:00, no Bar Uptown (Rua Breiner, 59, na Cedofeita) Miguel Carvalho, Rui Pereira e António Luís Catarino vão debater com quem estiver presente a Intoxicação Linguística de Vicente Romano. Uma boa ocasião para estudar a questão da linguagem política nas diferentes áreas de intervenção do estado e das instituições que lhe estão associadas. Debate informal, como aliás se quer.
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