quarta-feira, novembro 19, 2008

Cimeira do G-20 - O capitalismo faz milagres, de Santiago Alba Rico

Santiago Alba Rico é um filósofo espanhol que vive na Tunísia, onde ensina na Universidade. Escreveu o livro colectivo publicado um mês depois do 11 de Março de 2003 em Madrid, "Três dias que enganaram o mundo".


de Rebelión, 16-11-2008

O capitalismo é isto: um homem magro pede pão e recebe dez frangos um homem gordo; uma criança doente pede uma vacina e dobram a ração de vitaminas a uma criança sã; uma mulher com frio fica sem casa e entregam três edifícios mais ao senhorio. Há três dias, a edição digital do «El Mundo» (13.11.2008) publicava o seguinte título; «Solbes admite que as famílias ‘notam pouco’ as ajudas à Banca» [“Solbes admite que las familias `notan poco´ las ayudas a la banca”].
O diabólico deste título —e desta declaração— é que o seu simples enunciado converte a ordem lógica das coisas numa contingência inesperada e incompreensível: Sim, ‘confesso’ que o mar se tornou líquido ou ‘reconheço’ que a neve não é preta, a liquidez e a brancura apresentam-se aos nossos olhos contra todas as previsões, contra o bom senso e —mais ainda— contra as regras.

As palavras de Solbes obrigam-nos a dar por adquiridos precisamente os dois princípios que a sua concessão vinha negar; o primeiro é que o normal, o lógico, o natural seria que as ajudas à banca beneficiassem as famílias, como o normal, o lógico e o natural é que se eu atiro moedas de chocolate sobre Paris, elas caiam no Alaska, ou se rego o meu jardim em Salamanca cresçam rosas no Djibuti; o segundo é que o verdadeiro propósito do governo tenha sido sempre o de ajudar as famílias, como o verdadeiro propósito de um marido infiel, quando acaricia a sua amante é proporcionar um orgasmo à sua mulher, ou o verdadeiro propósito de um prevaricador, quando desculpa o assassino seja o de homenagear a sua vítima.
Em tempos, o Rebelión tinha uma subsecção denominada: «Outro título é possível». A surpresa e a contrariedade de Solbes, perante a inesperada, inexplicável, irregular e anti-natural insensibilidade das famílias, que não notam o orgasmo dos bancos, revelam melhor toda a sua obscenidade à luz de outros títulos que me ocorrem ao correr da pena
“Solbes admite que o que os hóspedes do Hilton comem não alimenta os africanos”
“Solbes admite que o aumento de carros na Europa não ajudou os mecânicos do Haiti”
“Solbes admite que no jacuzzi de Emílio Botín não cabem 4.200 milhões de pessoas”
Ou o fluxo empático negativo:
“Solbes admite que o tsunami da Indonésia não afectou a costa espanhola”
“Solbes admite que os corpos dos nova-iorquinos sentem pouco as torturas em Abu Ghraib”
“Solbes admite que a escassez de água em muitas regiões de África não se fez sentir nas piscinas de Alicante”

Seria um milagre, que o menu da cimeira de Washinton engordasse os 950 milhões de esfomeados de todo o planeta. Que a dor dos iraquianos, dos palestinianos, dos afegãos, dos haitianos, dos congoleses doesse ao mundo inteiro, seria justo e humano. O capitalismo pretendeu fazer magia: que alguns comêssemos, bebêssemos, consumíssemos, nos divertíssemos e todos em toda a parte ficassem contentes. O que conseguiu, pelo contrário foi mais isto: que a maioria passe fome e sede, viva pouco, adoeça e sofra e que nós não sintamos nada.
Mas, vendo melhor, sim, as famílias europeias começam a notar as ajudas aos bancos, como as notam desde há décadas no Terceiro Mundo. Para o prevenir, os 22 países mais poderosos do planeta reuniram-se a comer codorniz fumada e a tomar algumas medidas partilhadas para poderem continuar com a magia e os milagres e para que —se for esse o caso — reprimir os blasfemos incrédulos que, apesar das carnes do Hilton, do «green» bem regado dos campos de golfe e da alegria dos banqueiros insistam em conservar um corpo faminto, sedento e dorido.
Também me ocorre outro título possível, para outro mundo possível: ‘O G-191 reúne-se para coordenar o socialismo do século XXI’. Se a ONU tivesse algum poder, todos os enormes recursos, todos os extraordinários esforços colectivos, todas as instituições internacionais que hoje dedicam o seu tempo e o seu saber a cogitar milagres assassinos não serviriam para impor algum terreno e profano realismo? O que a cimeira do G-20 demonstra é que a coordenação internacional, a cooperação entre Estados, a planificação global são possíveis e funcionam- O que demonstra é que até agora a coordenação internacional, a cooperação entre Estados e a planificação global apenas serviram para inventar complicadíssimos procedimentos destinados a dar de comer ao saciado, robustecer o curado, consolar o ditoso, socorrer o rico, armar o injusto e libertar o homicida. Também, bem entendido, para impedir qualquer resistência contra estes mandamentos.
«O capitalismo não é o culpado», diz Bush. A única coisa que sabemos, porém, é que a culpa não é da União Soviética. Fracassou o socialismo? Nem sequer se tentou.