Luis Maffei é poeta e professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal Fluminense e screveu este arigo na revista A Pequena Morte.
(recensão a A metamorfose das plantas dos pés, de Catarina Nunes de Almeida. Porto: Deriva, 2008):
A metamorfose das plantas dos pés exige a quem sobre ele escreve estar “dentro dentro dentro” [1], assim, muitas vezes por intensidade, como leio na tradução/ mudança de Herberto Helder a “Sobre tradução de poesia”, poema do polonês Zbigniew Herbert. Portanto, deixa de ser uma escrita sobre para ser uma escrita em, e o livro é provocativo desde o estranho poema-dedicatória que o abre: “Ao Vesúvio/ que me engoliu” (p. 6). O vulcão é um lugar de estar, e vejo-me, pois, diante da necessidade de também ser metido nele, engolido, exposto a sua boca muito aberta, ainda mais se leio, já pelo fim do livro, que “A neve no cume do vulcão concede ao fogo/ o rosto das amendoeiras” (p. 46). Existe uma iniciação a ser cumprida, pelo mundo, no mundo.
Cria-se, imediatamente, uma estória, uma trilha, um caminho, uma epígrafe de parceria: “Guarda-te melhor/ guarda-te caminhante/ do caminho que também caminha” (p. 7), Rilke. Se assim, abro da mesma forma a minha boca, abro os olhos à minha própria estória, faço minha a escrita dessa obra que, como uma senda, possui capítulos: o I tem título idêntico ao do livro; o II se chama “Corpo floresta” e o III, “A descoberta do fogo”. Desconfio que exista uma tarefa para o leitor: a de tornar-se capaz de III porque terá sido capaz de II, e o ato metamórfico da transformação do “corpo” em outro terá que respeitar o mesmo: agregação, não substituição. E “fogo” nas mãos, enfim, “fogo” na “floresta”, incêndio, amor ainda é um fogo, a “neve” vive no “vulcão”, caldeia-se, queima as plantas dos pés.
“Reconheces esta água para onde cais?” (p. 11), primeiro verso do primeiro poema de “A metamorfose das plantas dos pés”: amor ainda é um fogo, amor ainda é capaz de um “rendilhado de luas maternas”, de “todas as conchas”, de “todas as coxas celebradas” (p. 11). Caminhar com Catarina é caminhar de mãos dadas, pois a boca que fala convida a um dueto que se manifesta no assombroso, por complexo, erotismo dos poemas. “O álbum abriu a boca enorme”, numa modificação extrema do mundo, “e repara no perfume dos ossos/ como se as fotos continuassem lá longe/ debaixo da terra (…)” (p. 12): algum luto nessa memória um tanto familiar. Mas “coxas” são lugar de passagem e paisagem, “as unhas que outros cravaram pelas coxas” (p. 47), “e as vozes recolhiam-se sempre mais até serem/ um fio de prado um horto de lutos cristalizados: da marcha líquida dos soldados/ bebem as aves e as aveleiras” (p. 48).
É flagrante a fusão entre corpo e paisagem, corpo e mundo, lugares de tangência e encontro, encontros, fusão. Insisto na boca do canto, muito aberta: “Avistei a boca ao entardecer” (p. 14), e insisto na fusão: “Plantei o primeiro seio/ a que chamámos macieira/ e abandonei o ventre/ à generosidade vegetal./ Nessa noite dormimos por dentro e por fora/ do mundo.” (p. 14). Sim, exposta está uma relação, uma mistura: maternidade, eu, outro, nós, corpo, mundo. A natureza, aqui, é lugar de “generosidade”, mas a natureza reside nos corpos que, generosamente, fazem do mundo uma convidativa cama.
Se o corpo é natural, capaz de ser “Corpo floresta”, ele não deixa de ser da cultura, e culturaliza, de modo agudamente pessoal, a sorte de “Vesúvio/ que” o “engoliu”: “Tantas vezes se falou de origens vulcânicas/ e no entanto era nosso destino adiar o fogo/ compor hinos às árvores decepadas” (p. 15). Um gesto de feminização do mundo, ainda mais notável no último poema do livro: “Os homens desaguaram dentro dos homens/ bailarinas alinhadas para o primeiro acto de amor./ Só o amor cheira a sangue só as cigarras/ o perfume das espadas na ossatura dos campos/ completam a primavera na vala comum.” (p. 48). Homens “desaguaram” noutros “bailarinas”, e delas imitaram o gesto e o viço. E “na vala comum” a “primavera”, uma tensão entre certa ecologia política e certa ecografia, cultura a naturalizar o discurso da boca muito aberta de Catarina Nunes de Almeida, que compõe “hinos”, faz poemas.
E uma terceira pessoa é romanceada nesse livro de poemas, metamórfico como as tranformantes “plantas dos pés” que passeiam por seu título: “Deixou-se ficar ao sol – a língua iluminada/ polida pelo vento e as ruínas da folha onde foram/ um joelho um braço rasgando as nuvens.” (p. 26): é na escrita que se dá o erotismo nesses poemas, o que me faz pensar imediatamente em Luiza Neto Jorge, amante da “folha” como lugar de texto e corpo, dona de “língua iluminada” para atos eróticos em cantos e recantos. Claro, é possível detectar muita poesia portuguesa (e não só: atenção ao Rilke da epígrafe) em A metamorfose das plantas dos pés; Fiama, por exemplo, na lida com o que seja natural, na concisão e na “Ave severa esta árvore que embala a morte.” (p. 26): se “Água” ainda “significa ave” [2], vejo-me diante não apenas dum modo de reinventar a metáfora, mas dum tipo de significação a que interessa o encontro do diverso. Pela diferença, a tangência, e, na tangência, ainda uma grande novidade.
Novidade no corpo, do corpo, “Corpo floresta” capaz d’ “A descoberta do fogo”, da prática de um amor aprendiz que tem no poema seu lugar de iniciação: “Vieste para a floresta carregado de dedos/ como quem vem abraçar por dentro/ uma árvore o bicho que cai/ entre sílabas e âncoras minúsculas./ Estás pousado na terra/ mas são as ervas que se deitam no teu dorso constelado/ e aguardam o correr das nuvens/ a respiração de algum astro mais brando.” (p. 38). Deliro nas preposições: “de dedos”, não por dedos; talvez, portanto, como dedos, extremidade, sim, do corpo, tangência, tangência sempre. Se “por dentro/ uma árvore”, entra-se nela e por ela é-se entrado, e os “homens desaguaram dentro dos homens” pois se trata, enfim, do humano. E aqui suspeito (invento? Caso sim, peço desculpas, mas, como vou de mãos dadas a Catarina, é efeito de leitura, é coisa, antes de mais, dela) duma nova metamorfose, espantosa: é estelar e cósmico “algum astro mais brando”, com manifestação direta na “respiração” de homens e mulheres, sobretudo se amantes. Mas, sendo do uso da língua referir-se a grandes nomes com o vocábulo “astro”, e se “brando” é o nome de um grande nome, penso no estadunidense milagre humano que atende pelo nome de Marlon Brando, “astro”, em algum nível, cujo corpo se pode acessar pelo símbolo, pelo drama, pelo fingimento.
Pessoa, pois: num poema celebração do incêndio, celebra-se Nero – “Bendito sejas tu, Nero, entre os pássaros”. Celebra-se também Ricardo Reis, não pelo que foi, mas pelo que poderia ter sido: “desenlacemos as mãos, Lídia,/ lancemos estas mãos ao mar –/ alguém cumprirá por nós/ as promessas.” (p. 39). Serão “promessas” não cumpridas de amor vívido e vivido? Catarina leitora também de Adília Lopes – “casa-te com Lídia/ tem bebés/ passa a lua-de-mel/ na Grécia” [3] –? Talvez eu possa pensar nos “bebés”, nos filhos como cumpridores da fogosa promessa que une o Ricardo Reis de Catarina a essa nova Lídia, pois uma figura forte de A metamorfose das plantas dos pés é a mãe: “e tu tremias quando te chamava/ mãe.” (p. 17). Encerro a citar um poema que se encontra longe do fim da obra, e percebo que o caminho inventado por esse livro com capítulos não é de direção única: como uma boca muito aberta, as trilhas dessas falas têm diversos sentidos, cá e lá, para frente e para trás, sem que jamais alguma paralisia ouse mostrar-se.
NOTAS
[1] HELDER, Herberto. Oulof. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997. p, 10.[2] BRANDÃO, Fiama Hasse Pais. Morfismos. In. BRANDÃO, Fiama Hasse Pais et. alli. Poesia 61. Lisboa, Edição de autor, 1961. p. 1.[3] LOPES, Adília. Obra. Lisboa: Mariposa Azul, 2000. p. 387.
A metamorfose das plantas dos pés exige a quem sobre ele escreve estar “dentro dentro dentro” [1], assim, muitas vezes por intensidade, como leio na tradução/ mudança de Herberto Helder a “Sobre tradução de poesia”, poema do polonês Zbigniew Herbert. Portanto, deixa de ser uma escrita sobre para ser uma escrita em, e o livro é provocativo desde o estranho poema-dedicatória que o abre: “Ao Vesúvio/ que me engoliu” (p. 6). O vulcão é um lugar de estar, e vejo-me, pois, diante da necessidade de também ser metido nele, engolido, exposto a sua boca muito aberta, ainda mais se leio, já pelo fim do livro, que “A neve no cume do vulcão concede ao fogo/ o rosto das amendoeiras” (p. 46). Existe uma iniciação a ser cumprida, pelo mundo, no mundo.
Cria-se, imediatamente, uma estória, uma trilha, um caminho, uma epígrafe de parceria: “Guarda-te melhor/ guarda-te caminhante/ do caminho que também caminha” (p. 7), Rilke. Se assim, abro da mesma forma a minha boca, abro os olhos à minha própria estória, faço minha a escrita dessa obra que, como uma senda, possui capítulos: o I tem título idêntico ao do livro; o II se chama “Corpo floresta” e o III, “A descoberta do fogo”. Desconfio que exista uma tarefa para o leitor: a de tornar-se capaz de III porque terá sido capaz de II, e o ato metamórfico da transformação do “corpo” em outro terá que respeitar o mesmo: agregação, não substituição. E “fogo” nas mãos, enfim, “fogo” na “floresta”, incêndio, amor ainda é um fogo, a “neve” vive no “vulcão”, caldeia-se, queima as plantas dos pés.
“Reconheces esta água para onde cais?” (p. 11), primeiro verso do primeiro poema de “A metamorfose das plantas dos pés”: amor ainda é um fogo, amor ainda é capaz de um “rendilhado de luas maternas”, de “todas as conchas”, de “todas as coxas celebradas” (p. 11). Caminhar com Catarina é caminhar de mãos dadas, pois a boca que fala convida a um dueto que se manifesta no assombroso, por complexo, erotismo dos poemas. “O álbum abriu a boca enorme”, numa modificação extrema do mundo, “e repara no perfume dos ossos/ como se as fotos continuassem lá longe/ debaixo da terra (…)” (p. 12): algum luto nessa memória um tanto familiar. Mas “coxas” são lugar de passagem e paisagem, “as unhas que outros cravaram pelas coxas” (p. 47), “e as vozes recolhiam-se sempre mais até serem/ um fio de prado um horto de lutos cristalizados: da marcha líquida dos soldados/ bebem as aves e as aveleiras” (p. 48).
É flagrante a fusão entre corpo e paisagem, corpo e mundo, lugares de tangência e encontro, encontros, fusão. Insisto na boca do canto, muito aberta: “Avistei a boca ao entardecer” (p. 14), e insisto na fusão: “Plantei o primeiro seio/ a que chamámos macieira/ e abandonei o ventre/ à generosidade vegetal./ Nessa noite dormimos por dentro e por fora/ do mundo.” (p. 14). Sim, exposta está uma relação, uma mistura: maternidade, eu, outro, nós, corpo, mundo. A natureza, aqui, é lugar de “generosidade”, mas a natureza reside nos corpos que, generosamente, fazem do mundo uma convidativa cama.
Se o corpo é natural, capaz de ser “Corpo floresta”, ele não deixa de ser da cultura, e culturaliza, de modo agudamente pessoal, a sorte de “Vesúvio/ que” o “engoliu”: “Tantas vezes se falou de origens vulcânicas/ e no entanto era nosso destino adiar o fogo/ compor hinos às árvores decepadas” (p. 15). Um gesto de feminização do mundo, ainda mais notável no último poema do livro: “Os homens desaguaram dentro dos homens/ bailarinas alinhadas para o primeiro acto de amor./ Só o amor cheira a sangue só as cigarras/ o perfume das espadas na ossatura dos campos/ completam a primavera na vala comum.” (p. 48). Homens “desaguaram” noutros “bailarinas”, e delas imitaram o gesto e o viço. E “na vala comum” a “primavera”, uma tensão entre certa ecologia política e certa ecografia, cultura a naturalizar o discurso da boca muito aberta de Catarina Nunes de Almeida, que compõe “hinos”, faz poemas.
E uma terceira pessoa é romanceada nesse livro de poemas, metamórfico como as tranformantes “plantas dos pés” que passeiam por seu título: “Deixou-se ficar ao sol – a língua iluminada/ polida pelo vento e as ruínas da folha onde foram/ um joelho um braço rasgando as nuvens.” (p. 26): é na escrita que se dá o erotismo nesses poemas, o que me faz pensar imediatamente em Luiza Neto Jorge, amante da “folha” como lugar de texto e corpo, dona de “língua iluminada” para atos eróticos em cantos e recantos. Claro, é possível detectar muita poesia portuguesa (e não só: atenção ao Rilke da epígrafe) em A metamorfose das plantas dos pés; Fiama, por exemplo, na lida com o que seja natural, na concisão e na “Ave severa esta árvore que embala a morte.” (p. 26): se “Água” ainda “significa ave” [2], vejo-me diante não apenas dum modo de reinventar a metáfora, mas dum tipo de significação a que interessa o encontro do diverso. Pela diferença, a tangência, e, na tangência, ainda uma grande novidade.
Novidade no corpo, do corpo, “Corpo floresta” capaz d’ “A descoberta do fogo”, da prática de um amor aprendiz que tem no poema seu lugar de iniciação: “Vieste para a floresta carregado de dedos/ como quem vem abraçar por dentro/ uma árvore o bicho que cai/ entre sílabas e âncoras minúsculas./ Estás pousado na terra/ mas são as ervas que se deitam no teu dorso constelado/ e aguardam o correr das nuvens/ a respiração de algum astro mais brando.” (p. 38). Deliro nas preposições: “de dedos”, não por dedos; talvez, portanto, como dedos, extremidade, sim, do corpo, tangência, tangência sempre. Se “por dentro/ uma árvore”, entra-se nela e por ela é-se entrado, e os “homens desaguaram dentro dos homens” pois se trata, enfim, do humano. E aqui suspeito (invento? Caso sim, peço desculpas, mas, como vou de mãos dadas a Catarina, é efeito de leitura, é coisa, antes de mais, dela) duma nova metamorfose, espantosa: é estelar e cósmico “algum astro mais brando”, com manifestação direta na “respiração” de homens e mulheres, sobretudo se amantes. Mas, sendo do uso da língua referir-se a grandes nomes com o vocábulo “astro”, e se “brando” é o nome de um grande nome, penso no estadunidense milagre humano que atende pelo nome de Marlon Brando, “astro”, em algum nível, cujo corpo se pode acessar pelo símbolo, pelo drama, pelo fingimento.
Pessoa, pois: num poema celebração do incêndio, celebra-se Nero – “Bendito sejas tu, Nero, entre os pássaros”. Celebra-se também Ricardo Reis, não pelo que foi, mas pelo que poderia ter sido: “desenlacemos as mãos, Lídia,/ lancemos estas mãos ao mar –/ alguém cumprirá por nós/ as promessas.” (p. 39). Serão “promessas” não cumpridas de amor vívido e vivido? Catarina leitora também de Adília Lopes – “casa-te com Lídia/ tem bebés/ passa a lua-de-mel/ na Grécia” [3] –? Talvez eu possa pensar nos “bebés”, nos filhos como cumpridores da fogosa promessa que une o Ricardo Reis de Catarina a essa nova Lídia, pois uma figura forte de A metamorfose das plantas dos pés é a mãe: “e tu tremias quando te chamava/ mãe.” (p. 17). Encerro a citar um poema que se encontra longe do fim da obra, e percebo que o caminho inventado por esse livro com capítulos não é de direção única: como uma boca muito aberta, as trilhas dessas falas têm diversos sentidos, cá e lá, para frente e para trás, sem que jamais alguma paralisia ouse mostrar-se.
NOTAS
[1] HELDER, Herberto. Oulof. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997. p, 10.[2] BRANDÃO, Fiama Hasse Pais. Morfismos. In. BRANDÃO, Fiama Hasse Pais et. alli. Poesia 61. Lisboa, Edição de autor, 1961. p. 1.[3] LOPES, Adília. Obra. Lisboa: Mariposa Azul, 2000. p. 387.