PC. É à matriz grega que devemos os ideais éticos e estéticos que norteiam a nossa (in)civilização. Se em «Abrasivas» tínhamos o Oriente, aqui, em «Meridionais», temos o sul e o sol. Um sol, às vezes, abrasivo…
Em «Meridionais» não há excessos, há uma estratégia de redução e contenção, que a meu ver se afasta dos haikai e se aproxima da tradição «meridional» do epigrama. Concorda?
Em «Meridionais» não há excessos, há uma estratégia de redução e contenção, que a meu ver se afasta dos haikai e se aproxima da tradição «meridional» do epigrama. Concorda?
JPM. Embora o haiku seja um género que sempre me atraiu e, em «Meridionais», figurem textos que dele se podem aproximar pela brevidade, também é certo que as estruturas interna e externa dessa forma breve estão ausentes. É admissível que alguns textos bebam numa tradição mediterrânica (Grécia, Roma…) que cultivou, também ela, a forma breve e se deixou seduzir por um impulso gnómico que se exprime em muito poucas palavras.
PC. Em «Meridionais» temos uma poética desajectivada, pontuada, apenas, por notas de um azul grego e da brancura da cal. Poderemos falar na sedução/tentação do silêncio?
JPM. É porventura uma obsessão. O silêncio é o espaço de todos os sentidos, de todos os possíveis. Talvez por isso, tenha escrito um dia: «O silêncio vive numa casa onde a música entra quase sem pedir licença.»
Por outro lado, existe a atracção por um mito. Um mito literário, que é o sul, e que no caso português se alimenta também da ideia de planície, do «plaino abandonado», que pode ser um modo de figurar o próprio silêncio. Mas a imagem da planície, como o silêncio, é sempre tensa. Como se algo estivesse à beira de acontecer, de explodir.
Também estamos, como disse, a falar de um mito. Pois que outra coisa pode ser o que não passa de um norte, para os que a sul desse «sul» habitam? É como se o sul, aqui, fosse por vezes um «desnorte». Não obstante a condição de artefacto de linguagem que é própria de qualquer texto de intenção literária, a escrita enraíza-se em obsessões, experiências pessoais. Para alguém que acredita viver numa cidade setentrional (mesmo que isto soe um pouco estúpido), essas obsessões e experiências prendem-se com cenários e gente. Em «Meridionais», os cenários da escrita remetem para outros, esses reais: Grécia, Mediterrâneo, Alentejo (e os alentejanos é claro)…
Por outro lado, existe a atracção por um mito. Um mito literário, que é o sul, e que no caso português se alimenta também da ideia de planície, do «plaino abandonado», que pode ser um modo de figurar o próprio silêncio. Mas a imagem da planície, como o silêncio, é sempre tensa. Como se algo estivesse à beira de acontecer, de explodir.
Também estamos, como disse, a falar de um mito. Pois que outra coisa pode ser o que não passa de um norte, para os que a sul desse «sul» habitam? É como se o sul, aqui, fosse por vezes um «desnorte». Não obstante a condição de artefacto de linguagem que é própria de qualquer texto de intenção literária, a escrita enraíza-se em obsessões, experiências pessoais. Para alguém que acredita viver numa cidade setentrional (mesmo que isto soe um pouco estúpido), essas obsessões e experiências prendem-se com cenários e gente. Em «Meridionais», os cenários da escrita remetem para outros, esses reais: Grécia, Mediterrâneo, Alentejo (e os alentejanos é claro)…
PC. Não há leituras inocentes, nem leitores virgens. Ler «Meridionais» depois da Sophia helénica e do sabor do sal/cal de Eugénio, tem um sabor diferente. É uma filiação assumida, consciente?
JPM.Eu diria que é antes a inscrição numa cultura, numa tradição – ou numa parte dela – a que me não posso furtar sendo o que sou, tendo nascido onde nasci, tendo lido o que li.
Há, por outro lado, uma viagem que continuo a fazer, desde que visitei, pela primeira vez, a Grécia, em 1975, país a que regressei, em duas ocasiões, mais de vinte anos depois. A terceira visita fixou-se em Creta. A Grécia não é apenas um país, é um dos lugares onde, porventura, os deuses estiveram mais vivos; e é tudo o resto que sabemos e que ecoa em nós, quase em permanência. Por isso, mesmo não estando eu lá, a Grécia continua a sua viagem dentro de mim. A Grécia, além disso, é Cavafy, Kazantzakis, Odysseus Elitis, Yannis Ritsos, Seferis e os clássicos. E é também Sophia, claro.
JPM.Eu diria que é antes a inscrição numa cultura, numa tradição – ou numa parte dela – a que me não posso furtar sendo o que sou, tendo nascido onde nasci, tendo lido o que li.
Há, por outro lado, uma viagem que continuo a fazer, desde que visitei, pela primeira vez, a Grécia, em 1975, país a que regressei, em duas ocasiões, mais de vinte anos depois. A terceira visita fixou-se em Creta. A Grécia não é apenas um país, é um dos lugares onde, porventura, os deuses estiveram mais vivos; e é tudo o resto que sabemos e que ecoa em nós, quase em permanência. Por isso, mesmo não estando eu lá, a Grécia continua a sua viagem dentro de mim. A Grécia, além disso, é Cavafy, Kazantzakis, Odysseus Elitis, Yannis Ritsos, Seferis e os clássicos. E é também Sophia, claro.
PC. Duas geografias, dois cadernos, Grécia e Alentejo, no entanto, o mesmo olhar distanciado, não participante, contemplativo, mas nunca passivo, nem ausente: há um «dizer» de fora que parece querer, não interferindo no real, dar-lhe um outro ângulo. Podemos falar de uma paisagem sã, quando desabitada (ou apenas quando habitada pela sombra dos deuses)?
JPM. O ponto de partida do segundo caderno (que tem sobretudo o Alentejo como horizonte) foi quase todo anterior a «Abrasivas». O de chegada quase todo posterior. Porque, embora alguns textos, os mais antigos, tenham sido redigidos há mais de vinte anos, o livro, em grande parte, foi reescrito. E, nesse processo de reescrita, alguma coisa fez com que o resultado final, aqui e acolá, se aproximasse de «Abrasivas», o meu livro de aforismos (e não só) que assumem a forma de prosas mínimas. Grande parte dos textos de «Meridionais» tem algo de fragmentário, são fragmentos em prosa também (e muita da poesia grega antiga que chegou até nós chegou sob a forma de fragmento, como a de Safo).
O Alentejo é um país, não é uma província. É onde gostaria de viver. Certas cores, cheiros, sabores que não vou dizer aqui, para não resvalar para o «cliché» turístico, como já estou a fazer. O que o Alentejo é está dito no livro. Plaino e música. Um punhado de palavras. Mas é também uma paisagem povoada. De pessoas e ou de sombras. Sobretudo os camponeses ou o que deles resta neste tempo de ruínas. O Alentejo é a mulher e o homem verticais, um clamor ecoando na planície. Cenário por excelência da Revolução. Da Revolução falhada, é certo, mas que existiu como tal e, enquanto existiu, instaurou uma outra dimensão do tempo que, para mim, ficou inscrita na paisagem. E a palavra revolução é daquelas que «vão morrendo com os anos», como se diz num dos textos. Ou melhor: que alguns vão fazendo os possíveis para que morra, de morte lenta ou, se as circunstâncias o permitirem, súbita.
Reconheço, por outro lado, que no primeiro caderno se respira uma certa nostalgia do divino (o divino grego) e uma busca do seu eco num cenário umas vezes devastado, outras vezes deixando entrever uma que outra vibração ou música que quase não logra desprender-se de certas ruínas, de uma ilha, de uma montanha ou de uma simples oliveira antiquíssima.
O Alentejo é um país, não é uma província. É onde gostaria de viver. Certas cores, cheiros, sabores que não vou dizer aqui, para não resvalar para o «cliché» turístico, como já estou a fazer. O que o Alentejo é está dito no livro. Plaino e música. Um punhado de palavras. Mas é também uma paisagem povoada. De pessoas e ou de sombras. Sobretudo os camponeses ou o que deles resta neste tempo de ruínas. O Alentejo é a mulher e o homem verticais, um clamor ecoando na planície. Cenário por excelência da Revolução. Da Revolução falhada, é certo, mas que existiu como tal e, enquanto existiu, instaurou uma outra dimensão do tempo que, para mim, ficou inscrita na paisagem. E a palavra revolução é daquelas que «vão morrendo com os anos», como se diz num dos textos. Ou melhor: que alguns vão fazendo os possíveis para que morra, de morte lenta ou, se as circunstâncias o permitirem, súbita.
Reconheço, por outro lado, que no primeiro caderno se respira uma certa nostalgia do divino (o divino grego) e uma busca do seu eco num cenário umas vezes devastado, outras vezes deixando entrever uma que outra vibração ou música que quase não logra desprender-se de certas ruínas, de uma ilha, de uma montanha ou de uma simples oliveira antiquíssima.
PC. «Domingo em Nisa» é também Cesário e Nobre («Georges! anda ver meu país de romarias E procissões»). É um texto de uma crueldade atroz, porque é uma polaroid de uma certa forma de ser Portugal. É o mostrar de um Portugal «abrasivo» – «o sol golpeia o ar» –, sem a limpidez grega («imundos de poeira»). O cheiro do fumeiro, do suor, a soneira e as cólicas: a noiva branca, os convidados «barbeados e bovinos» e os «absurdos / longos vestidos de noite para um evento diurno».
Um texto de desencanto, uma nota, cronística, de um certo Portugal rural ou uma crítica a um país que parece não saber ser meridional?
Um texto de desencanto, uma nota, cronística, de um certo Portugal rural ou uma crítica a um país que parece não saber ser meridional?
JPM. Não resisti a recriar essa cena um pouco cruel, embora goste muito de Nisa, uma vila muito bonita. Concordo com quase tudo o que diz (e, à medida que os anos passam, cada vez gosto mais do Cesário e do Nobre…). Contudo, o ser meridional também passa por esse carácter um pouco abrasivo, que se encontra na Itália do sul, na Sicília e mesmo no sul da França e na Andaluzia. E até em Heraclion. Carácter que uma certa «Europa connosco», uma certa «Europa radarizada» (como escreveu José Afonso) despreza e procura à viva força domesticar.
Viana/Porto - 3 de Abril de 2007.
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