Tradução: Júlio Henriques. Antígona, 2022
Depois de «Europeana», o checo Patrik Ourednik, parte, em 2017, para mais um livro sarcástico sobre o capitaloceno e as contradições por vezes kafkianas que são parte dele. O autor não poupa os dirigentes do mundo e muito menos o leitor, não fosse ele igualmente tradutor de Boris Vian, Rabelais, Alfred Jarry (olha que três!) e Raymond Queneau. Um livro de uma ironia tão fina que entra pelos nossos poros e por debaixo da porta, com grande prazer de leitura, mesmo sendo nós os que de um modo ou de outro deixam chegar as coisas até ao estado lamentável em que nos encontramos.«O futuro já não é o que era.Você deve ter-se apercebido disso: o futuro já não é o que era. No passado, o futuro desenrolava-se principalmente segundo três modos de acção.
- O mundo acabava e tudo começava do zero para um mundo idêntico, versão pessimista da maioria das crenças.
- O mundo acabava num banho de sangue medonho e derradeiro, e sobrevinha então um mundo de felicidade, versão optimista de certas religiões.
- O mundo nunca acabava e a felicidade, que era o seu fermento, ia aumentando até ao fim dos tempos, eles próprios indefinidamente renováveis, versão temerária dos fins da História.
Mas no início do século XXI, estas teorias estavam obsoletas. As previsões tinham evoluído. Todas as pessoas dotadas de um certo sentido das realidades concordavam num ponto: seja qual for o procedimento encarado, isto vai acabar mal. Ou num medonho banho de sangue seguido de coisa nenhuma, hipótese optimista. Ou em banhos de sangue um pouco por toda a parte seguidos de outros banhos de sangue um pouco por toda a parte, indefinidamente, até o universo se dilatar suficientemente para que a sua densidade atinja um valor infinito, provocando assim a destruição das galáxias e dos pobres-diabos que nelas habitam. Alguns observadores acrescentavam a isso um elemento complementar: o embrutecimento paralelo e até aqui inconcebível da Humanidade.» (pág.8)
Acresce dizer que Gaspard a personagem central do livro, embora Adolph, o boche, não lhe fique atrás, é um secretário importante do presidente mais estúpido dos EUA. O problema para o leitor é saber a qual se refere.
Também sobre o lema que a editora escolheu (e bem) para a contracapa é este pensamento de Ourednik: «O abuso da inteligência impede que se compreenda a estupidez e, por conseguinte, que a ela se pode resistir. Deste modo, a partir de um certo grau, a inteligência torna-se suficientemente estúpida para considerar a estupidez tão inteligente como ela própria.» (pág. 125)
Mais sobre Patrik Ourednik no Deriva das Palavras: https://derivadaspalavras.blogspot.com/2019/01/sinto-que-o-que-havia-de-bom-em-mim-me.html
Artigo publicado no suplemento Taboa Redonda do El Progreso de Lugo