sábado, abril 24, 2021

O 25 de Abril no Liceu José Falcão. Uma memória: a Lista C



São memórias quase com 47 anos, mas elas estão cá já não tão vivas, mas ainda persistem. O 25 de Abril, dia da liberdade, esse é inesquecível. O que se seguiu foi o início de mudanças fundamentais para uma nova sociedade, realizadas por jovens que nessa altura tinham entre 15 a 17 anos. Fizemos de tudo o que a ''agit prop'' exigia, mais a seriedade que obrigava igualmente à elaboração de uma lista para a Associação de Estudantes do Liceu José Falcão. O seu programa aqui está em 16 páginas dactilografadas no velho stencil e impresso à manivela. Data de Novembro de 1974.

Essa experiência já ninguém nos tira e foi lastro para lutas contínuas ao longo da vida, mesmo com o amargo de boca de vermos muitas das conquistas barradas pela ''normalização'' reaccionária do 25 de Novembro. Alguns de nós tínhamos já a experiência do que era lutar na CPAEL (Comissão Pró-Associações de Estudantes Liceais) integrada na semi-legal CDEC (Comissão Democrática de Estudantes de Coimbra) com o marcelismo de unhas de fora. As ''eleições'' de 1973 também ajudaram a construir uma consciencialização, a putos como nós, que isto não ia lá por via pacífica. Os liceus fervilhavam e enquadravam uma luta permanente que ainda está mal estudada. E era a UEC, constituída em Janeiro de 1972, que nos dava as ferramentas essenciais para uma luta estudantil que aumentava de radicalização desde 1969.

O programa da Lista C, no Liceu José Falão, muito genericamente, tinha como lema «Unidade Estudantil com o Povo Trabalhador» lema esse decalcado da UNEP em acelerada construção nessa ocasião. Podia-se então ter acesso a itens do programa que afirmavam:

Ponto 4 - Pensamos, no entanto, que a democratização do ensino não se faz através da substituição de algumas cadeiras deixando o resto intacto, mas sim na definição de uma clara política de ensino com a participação activa dos estudantes e professores na reestruturação das matérias adoptando formas de avaliação de conhecimentos constantes, modificando o actual regime de faltas, abolindo todas e quaisquer faltas de carácter repressivo (faltas de material, disciplinares, etc.); pensamos que o acabar das faltas virá em consequência da alteração dos métodos de avaliação.

Ponto 6 - Saneamento - O saneamento é essencial na RGDE. Defendemos na actual situação o saneamento político pois, por razões pedagógicas não seria funcional devido à falta de professores. Defendemos cursos de reciclagem para os professores se manterem a par dos novos métodos pedagógicos. POR UM SANEAMENTO COMPLETO E EFICAZ!

Consideramos prioritário: A Nível Geral: 

a) Criar o máximo de aulas nocturnas para a juventude trabalhadora.

b) Aproveitar ao máximo as possibilidades de salas de aulas, de modo a evitar uma enorme superlotação das turmas.

c) Instauração em todas as escolas de co-educação (ensino misto).

d) Criação de condições para pôr a escola em contacto com a vida e melhoramento do material didáctico existente. Formação de bibliotecas modernizadas e progressistas.

e) Melhoramento das instalações escolares, obras nos sectores mais necessitados, melhoramento dos equipamentos técnicos e desportivos. Melhoria das condições de higiene na escola.

A Nível do nosso Liceu:

a) Fazer funcionar a sala de convívio e obter material para o seu apetrechamento.

b) Reduzir o preço do material escolar.

c) Melhorar as condições da cantina, bar e biblioteca, através de participação activa dos estudantes na gestão democrática desses sectores.

d) Aumentar e melhorar o material desportivo, quer em quantidade, quer em qualidade.

No Capítulo I, logo no início do programa da Lista C do Liceu José Falcão, em Novembro de 1974, destacavam-se as «Transformações Democráticas». Dizia-se então:

(...) Os partidos políticos, os sindicatos, as organizações democráticas actuam livremente. A imprensa publica-se sem censura. Exercem-se livremente os direitos de reunião e manifestação. A importante reivindicação da juventude portuguesa, o voto aos 18 anos já está incluída na nova lei eleitoral. Os trabalhadores alcançaram mais em oito meses, no plano das reivindicações sociais e económicas, do que o haviam conseguido em muitos anos de fascismo. A PAZ foi estabelecida em África. (...)

Os nomes da Lista C do Liceu José Falcão eram estes:

Direcção: Adriano Bordalo e Sá, Ananda Fernandes, Fernando Gil Mesquita, João Gouveia Monteiro, João Pinto Ângelo, Nazaré Fernandes (Né Ladeiras).

Mesa da RGA: Carlos Coelho, Maria Manuel Gaspar Afonso, Ramiro Santos.

Conselho Fiscal: António Luís Catarino, Carlos Pinheiro, Rui Carrington da Costa.

Suplentes: Ana Castro Silva, Carla Paula Baptista, Gilberto Pinto Ângelo, Paulo Gouveia Monteiro.

E assim se recupera alguma memória ainda muito fragmentada das lutas estudantis nos liceus. Se voltaria a fazer tudo de novo. Sem qualquer hesitação - sim!

António Luís Catarino

24 de Abril de 2021


sexta-feira, abril 23, 2021

«A Bandeira Vermelha - História do Comunismo», de David Priestland

 



Será muito difícil analisar concretamente «uma história» do comunismo. Há «histórias» do comunismo e aqui o plural faz toda a diferença. David Priestland faz um trabalho extraordinário de pesquisa, quer ao nível de documentos pós-89/90 dando-nos novas perspectivas baseadas em factos sustentados, quer na seriedade de análise que imprimiu à obra monumental de quase 800 páginas. Não é sem admiração que, ainda assim, notamos algumas lacunas ou, se quisermos, com alguns incómodos ao nível da apreciação da queda das experiências políticas, económicas e sociais do leste europeu ou das experiências falhadas do chamado Terceiro Mundo. 
Que não afiem já as facas os saudosos do anticomunismo da Guerra Fria. O livro não lhes dá oportunidade de sacarem argumentos primários. A verdade incontornável da análise que faz David Priestland é que o comunismo foi, é e será uma luta contínua pela construção de uma sociedade mais justa, mais igualitária, ou se quisermos entrar em subjectividades, mais feliz.
É verdade que a utopia comunista levou um rombo com a queda atabalhoada dos países do chamado socialismo real e com a URSS e igualmente com os caminhos, não compreendidos por várias gerações comunistas, que o PCChinês enveredou desde a morte de Mao.
Sejamos claros enquanto analisamos A Bandeira Vermelha: o comunismo continua a ser uma ideia fixa da humanidade, chamem-lhe agora o que quiserem ou entenderem chamar. E mais: é possível ver o nascimento de uma nova emergência comunista livre já das idiossincrasias que levaram à sua queda estrondosa. E ao ler este livro começamos a ter uma perspectiva bem diferente no que toca a 1917, à Guerra Civil de 1918-20 que arrasou a Rússia e o legado da NEP e depois de Estaline. O Terror e o Grande Terror foi o «mata e esfola» retirado, com algumas diferenças, da metodologia utilizada pela burguesia radical e jacobina da Revolução Francesa de 1789 e com o medo de um país cercado pelo imperialismo do ocidente. A escolha, hoje impossível, do prevalecer da indústria pesada e dos kolkhoses para aumento exponencial da produção a qualquer custo, teve causas que se podem explicar sem grande dificuldade, assim como as consequências nem sempre tão desastrosas quanto se diz por aí, em obras que deveriam ter mais cuidado na análise de documentos já disponíveis.
Podemos analisar o comunismo de várias perspectivas e até se devem fazer por uma pluralidade de pontos de vista, mas nunca perdendo o rumo que levou aos seus objectivos primeiros. Podemos analisar o facto de 1/3 da população mundial ter estado sob domínio de comunistas, de frentes populares ou de governos anticolonialistas e anti-imperialistas amigos da URSS e da China, mas não se pode dizer, porque é falso, segundo Priestland, que os povos foram necessariamente obrigados a serem subjugados por ditaduras sanguinárias. Não foram e o livro dá-nos exemplos disso mesmo e que os países europeus do leste socialista tiveram objectivos claros de ascender a uma nova sociedade com o apoio de largas franjas da juventude resistente saída de uma guerra devastadora entre 1939 e 1945. Tal como seria impossível que a URSS que tinha ficado sem 20 milhões de habitantes nessa guerra, saísse incólume económica e socialmente. A tarefa de a pôr de pé é estudada por Priestland apresentando-nos dados novos que nos podem fazer pensar nos enormes erros a que se chama de «estalinismo tardio», isto até 1953. A estagnação que se lhe seguiu foi consequência da quase destruição completa do tecido económico da II Guerra, embora houvesse muitas outras questões que deverão ser abordadas com outra perspectiva, necessariamente mais racional, assertiva e livre de todo o pensamento único com que somos brindados pela historiografia oficial e, já agora, bem alicerçada pela direita internacional.
Em conclusão, embora seja prematuro usar este termo quando se lê «A Bandeira Vermelha» de David Priestland: é possível estudar a história do comunismo estudando-o desde a I Internacional de Marx e Engels, passando pela social-democracia reformista da II Internacional até à III Internacional do Comintern e das Frentes Populares e das diversas dissidências por quem é possível ter alguma simpatia e mesmo compreensão política, mas torna-se impossível o estudo do comunismo, ou dos comunismos, sem as lutas dos Partidos Comunistas e das organizações revolucionárias congéneres cujo objectivo era a conquista de uma sociedade centrada na igualdade e na liberdade. Por muito que custe a alguns, isso foi conseguido em parte por todo o mundo, mas o seu contrário também é verdade: a queda da URSS e do campo socialista, mesmo aceitando a esclerose que o atacava por dentro, deu ao liberalismo e ao capitalismo armas que foram apontadas rápida e eficazmente à classe trabalhadora mundial. Veremos em breve os resultados, quando o tardocapitalismo colocar a sua agenda fascista e imperialista como forma de salvar a estratégia da acumulação de lucros nas mãos de núcleos de oligarcas e de destruição dos recursos do planeta.

António Luís Catarino

sexta-feira, abril 16, 2021

«O Amante do Vulcão», de Susan Sontag

 

Pode-se discorrer muito sobre este livro com as várias interpretações ou visões que necessariamente provoca. Obra intensa esta, comprada num alfarrabista por um preço residual, como é de bom tom dizer, é um autêntico caleidoscópio de testemunhos de um século tão «interessante» como foi o século XVIII. Para além da subterrânea luta de classes, em que sobressai a intocável nobreza europeia, isenta de impostos, de justiça, plena de prebendas e cargos fictícios para perpetuarem o seu domínio sobre uma enorme massa de gente miserável, para além disso teremos de contar ainda com a luta contínua de uma França napoleónica invasora e perseguidora dos absolutismos mais obsoletos como os dos Habsburgos aliados à liberal e conservadora Inglaterra que não perdoa a vilania revolucionária da burguesia europeia que multiplica as tentativas de subverter a ordem trinitária por revoluções.
É nesse contexto que o romance de Susan Sontag nos leva ao Reino das Duas Sicílias com capital na gloriosa Nápoles, nessa altura, a segunda cidade europeia depois de Paris. Embora o rei da Sicília seja um devasso e um bêbado e a Rainha traga consigo o famoso «lábio inferior caído dos Habsburgos» o absolutismo é dono e senhor do sul de uma ainda inexistente Itália, juntamente com com o poder do Cardeal Ruffo e do chefe da polícia Scarpia. O embaixador e nobre inglês Hamilton, mas mais conhecido por Cavaliere, é um coleccionador de antiguidades clássicas, conhecedor de vulcões como o Etna, Lipari e o «seu» Vesúvio que o vai escalando vezes sem conta, e igualmente das ruínas de Pompeia e Herculano. Aliás, esta última cidade é uma oportunidade para construir a maior da ironias por Sontag no livro: «Como um duplo urbanicídio mais recente, uma dessas cidades é muito mais conhecida em todo o mundo do que a outra. (Como disse um espirituoso, Nagasaki tinha um mau agente publicitário.) Cavaliere é um coleccionador de antiguidades - uma delas, descritas tão bem no livro, levou-me a conhecê-la: trata-se do «Vaso de Portland» onde Tétis espera o seu noivo no tálamo nupcial e que foi copiado industrialmente já no século XVIII - e frequentador da corte napolitana que aliás finge abominar, visto esconder-se através do véu diáfano do gosto pela arte e pelas coisas antigas. No entanto, isso não o impede de participar nas festanças mais baixas e em caçadas sangrentas que o rei de Nápoles promove. Tudo a bem da Inglaterra.
Este fingimento, torna-se um crime, perante a repressão sangrenta que se abate sobre os republicanos e monárquicos constitucionais, após a derrota francesa em Nápoles e Palermo. Os ingleses, nomeadamente Nelson e o próprio Cavaliere, juntamente com a sua mulher plebeia e histriónica que se torna amante do almirante, são instigadores do massacre que varia entre violações massivas, enforcamentos e decapitações entre outras orgias de sangue que duram vários meses. Se bem que Sontag centre grande parte do seu romance na «esposa do Cavaliere» que acompanha a decadência e indigência final de toda uma classe que não quer perder os seus privilégios, detive-me mais numa só personagem o que me levou a fazer uma pequena investigação, tal foi a força psicológica que lhe imprimiu a autora.
Trata-se de Leonor da Fonseca Pimentel, de origem portuguesa por parte do pai e espanhola por parte da mãe, napolitana por casamento que consegue anular por maus tratos contínuos do marido (isto no século XVIII!), poeta e de uma cultura extraordinária, defensora já dos direitos das mulheres, amiga igualmente de uma outra Leonor, a Marquesa de Alorna. Escreveu «O Triunfo da Virtude» que dedica ao déspota esclarecido, ambiguamente iluminista Marquês de Pombal (digo eu) e mais tarde, já republicana em Nápoles, uma «Ode à Liberdade» que lhe valeu ser presa e condenada à morte na sanha assassina que se deu após a tentativa revolucionária. O facto de permanecer e considerar-se portuguesa e não renunciar a nenhuma das suas ideias, talvez tenha ditado a recusa por parte do rei e rainha napolitanos a um último pedido: a de ser morta por decapitação e não por enforcamento. Essa recusa baseou-se numa das mais cínicas atitudes dos verdugos, ou seja, que sendo estrangeira e recusando a monarquia, logo a nobreza, não poderia usufruir do privilégio da decapitação. Cavaliere soube, encolheu os ombros e fez o mesmo a alguns dos seus melhores amigos. Desprezou-os pelos interesses de estado enquanto se preocupava com os restos da sua colecção antiga e com a recuperação do seu enorme palácio.
Talvez também pelo acto vergonhoso de quem tem o poder, pela coragem que Leonor Pimentel deu mostras e pela sua cultura diversificada e eclética, mesmo para o século XVIII, Susan Sontag dá-lhe o privilégio de ser a última personagem a finalizar esta obra inesquecível. Apetece-me transcrever a frase da Eneida escolhida por ela pouco antes do seu assassínio, quando consolava um jovem poeta de 24 anos que iria igualmente morrer nesse dia: Forsan et haec olim meminisse juvabit. Talvez um dia isto será recordado com alegria!
Eleonora Fonseca Pimentel (1752-1799)

António Luís Catarino

Utópicos, um podcast de Luísa Costa Gomes

Para quem já não pode, por manifesta incapacidade física e mental, de consumir as drogas duras que nos entram em casa via rádio e TV, há espaços que ainda são suficientemente livres para nos colarmos a eles e gostar. É o caso de Luísa Costa Gomes que sabe utilizar as redes sociais numa adição à inteligência em conversas soltas e livres sobre temas incontornáveis. Isto em https://open.spotify.com/show/3kzqMIa7iLilE4FQ5R3V7V

Os temas vão desde o provocador «Para quê tanto papel?» até ao (atenção universidades!) «Para que serve a pontuação?» passando pela distopia aterradora de «Um dia seremos todos atletas». Não percam este verdadeiro shot de desaceleração e queiram mais desta receita, que ninguém disse aqui que havia só más dependências.

terça-feira, abril 13, 2021

Antes que o Choupal seque e a Inês verta lágrimas de sangue

 

O meu lugar preferido no Choupal

A traçar um risco com as velhas Pilot

 


Traçar um simples risco por uma mão que pretende ser minha mas quando desenhada deixa de o ser. Estranho sempre quando desenho a minha mão. Fica outra. A Pilot preta de 0,4 que me acompanha há tanto tempo soube agora que me terá traído. Esborrata com a aguarela enquanto as novas Staedtler não o fazem. Totalmente limpas de constrangimentos em papel. Mas, mesmo assim, gosto de desenhar com as «velhas» Pilot ao ar livre, pontilhando os sombreados e realçando as sombras e os contornos.

quinta-feira, abril 08, 2021

O Tempo da Revolta, de Donatella Di Cesare


«O Tempo da Revolta», de Donatella Di Cesare
Edições 70, Janeiro de 2021

Donatella Di Cesare já nos tinha surpreendido com o seu «Vírus Soberano? A Asfixia Capitalista» editado igualmente por esta editora e com distribuição do jornal «Público», com prefácio de António Guerreiro. Apresentemos rapidamente a autora: professora de Filosofia na Universidade de Roma tem colaboração regular em websites e vários jornais europeus.
Irreverente e marginal do pensamento mainstream, neste momento nas mãos da direita, não deixa contudo de se mostrar rigorosa na apresentação das linhas de força do seu pensamento através de sínteses notáveis. Directa e transformadora analisa sem floreados inúteis o tardocapitalismo e os perigos de asfixia (por vezes literal) que o sistema económico dominante que nos vai fazendo a vida num crivo. Tanto económica, como política e socialmente. Ninguém está a salvo num capitalismo que nos mata numa emergência não escondida desde há muito e com uma avidez de lucro em que talvez pressinta que não poderá durar muito mais tempo.
Tal como um espectro que ameaça a sociedade de domínio, desde há séculos, «A revolta irrompe por todo o lado no mundo. Acende-se, apaga-se; volta a propagar-se. Transpõe as fronteiras, sacode as nações, agita os continentes. Um olhar sobre o mapa das suas explosões repentinas, dos seus imponderáveis movimentos, atesta a intermitência na acidentada paisagem política do novo século. A extensão faz-se acompanhar da intensidade. A topografia delineia um cenário onde o confronto é feito de contraste, dissidência, luta aberta. Os protestos alastram-se, as ocupações repetem-se, os atos de desobediência multiplicam-se, os confrontos intensificam-se. É o tempo da revolta.» Assim abre o livro de Donatella Di Cesare. 
As barricadas do século XIX, as praias debaixo das calçadas dos anos 60, as ruas das manifestações passaram, no início deste século para as ocupações de praças, transformadas em ágoras e assembleias abertas e livres, de microfones abertos onde os discursos são ainda ambivalentes e até contraditórios. Mas a raiva e a ira estão lá. Por dias, semanas e meses as pessoas ocupam as praças, porque já não é só a ocupação das universidades e fábricas que valem no estertor do capitalismo. A produção passou para segundo lugar. A vida é que interessa, a reocupação dos nossos dias e de uma nova economia e política congregacionais e livres de cadências alienantes de puro delírio do lucro e da especulação. 
A máscara, para a autora, é mais do que um suporte para a vida que se tornou pandémica. A máscara que usamos nas manifestações e protestos de rua não são mais do que verdadeiras metáforas que apelam ao nosso anonimato e que denunciam a inexistência de faces visíveis dos indivíduos sem nome e gigantescas empresas que usam o domínio sobre os 99% da população. O 1% ainda não foi derrotado e tomará medidas cada vez mais letais contra aqueles que se rebelem.
Hobsbawm passou uma parte substancial da sua vida a estudar rebeldes e revoltados. Tal como Donatella Di Cesare, que vê nas revoltas, sinais de explosões futuras que nada terão de programas nítidos de poder. São destruições e gritos, mas que isso não afaste a esquerda e os movimentos políticos ainda não recuperados, de criar hostilidades perigosas para com essas realidades que se multiplicam com várias facetas e que por vezes podem juntar camponeses rebelados com jovens de subúrbios completamente desesperados. Tanto mais que a extrema-direita e aflita direita sanitária está atenta a estas reivindicações para as canalizar para os seus programas de continuidade, algumas mais brutais e totalitárias que outras, mas sempre repressivas.
Cabe-nos compreender estas manifestações e «O Tempo da Revolta» dá-nos pistas e interpretações que apelam à transformação. O que faz dele uma obra útil.
António Luís Catarino