sexta-feira, abril 16, 2021

«O Amante do Vulcão», de Susan Sontag

 

Pode-se discorrer muito sobre este livro com as várias interpretações ou visões que necessariamente provoca. Obra intensa esta, comprada num alfarrabista por um preço residual, como é de bom tom dizer, é um autêntico caleidoscópio de testemunhos de um século tão «interessante» como foi o século XVIII. Para além da subterrânea luta de classes, em que sobressai a intocável nobreza europeia, isenta de impostos, de justiça, plena de prebendas e cargos fictícios para perpetuarem o seu domínio sobre uma enorme massa de gente miserável, para além disso teremos de contar ainda com a luta contínua de uma França napoleónica invasora e perseguidora dos absolutismos mais obsoletos como os dos Habsburgos aliados à liberal e conservadora Inglaterra que não perdoa a vilania revolucionária da burguesia europeia que multiplica as tentativas de subverter a ordem trinitária por revoluções.
É nesse contexto que o romance de Susan Sontag nos leva ao Reino das Duas Sicílias com capital na gloriosa Nápoles, nessa altura, a segunda cidade europeia depois de Paris. Embora o rei da Sicília seja um devasso e um bêbado e a Rainha traga consigo o famoso «lábio inferior caído dos Habsburgos» o absolutismo é dono e senhor do sul de uma ainda inexistente Itália, juntamente com com o poder do Cardeal Ruffo e do chefe da polícia Scarpia. O embaixador e nobre inglês Hamilton, mas mais conhecido por Cavaliere, é um coleccionador de antiguidades clássicas, conhecedor de vulcões como o Etna, Lipari e o «seu» Vesúvio que o vai escalando vezes sem conta, e igualmente das ruínas de Pompeia e Herculano. Aliás, esta última cidade é uma oportunidade para construir a maior da ironias por Sontag no livro: «Como um duplo urbanicídio mais recente, uma dessas cidades é muito mais conhecida em todo o mundo do que a outra. (Como disse um espirituoso, Nagasaki tinha um mau agente publicitário.) Cavaliere é um coleccionador de antiguidades - uma delas, descritas tão bem no livro, levou-me a conhecê-la: trata-se do «Vaso de Portland» onde Tétis espera o seu noivo no tálamo nupcial e que foi copiado industrialmente já no século XVIII - e frequentador da corte napolitana que aliás finge abominar, visto esconder-se através do véu diáfano do gosto pela arte e pelas coisas antigas. No entanto, isso não o impede de participar nas festanças mais baixas e em caçadas sangrentas que o rei de Nápoles promove. Tudo a bem da Inglaterra.
Este fingimento, torna-se um crime, perante a repressão sangrenta que se abate sobre os republicanos e monárquicos constitucionais, após a derrota francesa em Nápoles e Palermo. Os ingleses, nomeadamente Nelson e o próprio Cavaliere, juntamente com a sua mulher plebeia e histriónica que se torna amante do almirante, são instigadores do massacre que varia entre violações massivas, enforcamentos e decapitações entre outras orgias de sangue que duram vários meses. Se bem que Sontag centre grande parte do seu romance na «esposa do Cavaliere» que acompanha a decadência e indigência final de toda uma classe que não quer perder os seus privilégios, detive-me mais numa só personagem o que me levou a fazer uma pequena investigação, tal foi a força psicológica que lhe imprimiu a autora.
Trata-se de Leonor da Fonseca Pimentel, de origem portuguesa por parte do pai e espanhola por parte da mãe, napolitana por casamento que consegue anular por maus tratos contínuos do marido (isto no século XVIII!), poeta e de uma cultura extraordinária, defensora já dos direitos das mulheres, amiga igualmente de uma outra Leonor, a Marquesa de Alorna. Escreveu «O Triunfo da Virtude» que dedica ao déspota esclarecido, ambiguamente iluminista Marquês de Pombal (digo eu) e mais tarde, já republicana em Nápoles, uma «Ode à Liberdade» que lhe valeu ser presa e condenada à morte na sanha assassina que se deu após a tentativa revolucionária. O facto de permanecer e considerar-se portuguesa e não renunciar a nenhuma das suas ideias, talvez tenha ditado a recusa por parte do rei e rainha napolitanos a um último pedido: a de ser morta por decapitação e não por enforcamento. Essa recusa baseou-se numa das mais cínicas atitudes dos verdugos, ou seja, que sendo estrangeira e recusando a monarquia, logo a nobreza, não poderia usufruir do privilégio da decapitação. Cavaliere soube, encolheu os ombros e fez o mesmo a alguns dos seus melhores amigos. Desprezou-os pelos interesses de estado enquanto se preocupava com os restos da sua colecção antiga e com a recuperação do seu enorme palácio.
Talvez também pelo acto vergonhoso de quem tem o poder, pela coragem que Leonor Pimentel deu mostras e pela sua cultura diversificada e eclética, mesmo para o século XVIII, Susan Sontag dá-lhe o privilégio de ser a última personagem a finalizar esta obra inesquecível. Apetece-me transcrever a frase da Eneida escolhida por ela pouco antes do seu assassínio, quando consolava um jovem poeta de 24 anos que iria igualmente morrer nesse dia: Forsan et haec olim meminisse juvabit. Talvez um dia isto será recordado com alegria!
Eleonora Fonseca Pimentel (1752-1799)

António Luís Catarino