quinta-feira, abril 08, 2021

O Tempo da Revolta, de Donatella Di Cesare


«O Tempo da Revolta», de Donatella Di Cesare
Edições 70, Janeiro de 2021

Donatella Di Cesare já nos tinha surpreendido com o seu «Vírus Soberano? A Asfixia Capitalista» editado igualmente por esta editora e com distribuição do jornal «Público», com prefácio de António Guerreiro. Apresentemos rapidamente a autora: professora de Filosofia na Universidade de Roma tem colaboração regular em websites e vários jornais europeus.
Irreverente e marginal do pensamento mainstream, neste momento nas mãos da direita, não deixa contudo de se mostrar rigorosa na apresentação das linhas de força do seu pensamento através de sínteses notáveis. Directa e transformadora analisa sem floreados inúteis o tardocapitalismo e os perigos de asfixia (por vezes literal) que o sistema económico dominante que nos vai fazendo a vida num crivo. Tanto económica, como política e socialmente. Ninguém está a salvo num capitalismo que nos mata numa emergência não escondida desde há muito e com uma avidez de lucro em que talvez pressinta que não poderá durar muito mais tempo.
Tal como um espectro que ameaça a sociedade de domínio, desde há séculos, «A revolta irrompe por todo o lado no mundo. Acende-se, apaga-se; volta a propagar-se. Transpõe as fronteiras, sacode as nações, agita os continentes. Um olhar sobre o mapa das suas explosões repentinas, dos seus imponderáveis movimentos, atesta a intermitência na acidentada paisagem política do novo século. A extensão faz-se acompanhar da intensidade. A topografia delineia um cenário onde o confronto é feito de contraste, dissidência, luta aberta. Os protestos alastram-se, as ocupações repetem-se, os atos de desobediência multiplicam-se, os confrontos intensificam-se. É o tempo da revolta.» Assim abre o livro de Donatella Di Cesare. 
As barricadas do século XIX, as praias debaixo das calçadas dos anos 60, as ruas das manifestações passaram, no início deste século para as ocupações de praças, transformadas em ágoras e assembleias abertas e livres, de microfones abertos onde os discursos são ainda ambivalentes e até contraditórios. Mas a raiva e a ira estão lá. Por dias, semanas e meses as pessoas ocupam as praças, porque já não é só a ocupação das universidades e fábricas que valem no estertor do capitalismo. A produção passou para segundo lugar. A vida é que interessa, a reocupação dos nossos dias e de uma nova economia e política congregacionais e livres de cadências alienantes de puro delírio do lucro e da especulação. 
A máscara, para a autora, é mais do que um suporte para a vida que se tornou pandémica. A máscara que usamos nas manifestações e protestos de rua não são mais do que verdadeiras metáforas que apelam ao nosso anonimato e que denunciam a inexistência de faces visíveis dos indivíduos sem nome e gigantescas empresas que usam o domínio sobre os 99% da população. O 1% ainda não foi derrotado e tomará medidas cada vez mais letais contra aqueles que se rebelem.
Hobsbawm passou uma parte substancial da sua vida a estudar rebeldes e revoltados. Tal como Donatella Di Cesare, que vê nas revoltas, sinais de explosões futuras que nada terão de programas nítidos de poder. São destruições e gritos, mas que isso não afaste a esquerda e os movimentos políticos ainda não recuperados, de criar hostilidades perigosas para com essas realidades que se multiplicam com várias facetas e que por vezes podem juntar camponeses rebelados com jovens de subúrbios completamente desesperados. Tanto mais que a extrema-direita e aflita direita sanitária está atenta a estas reivindicações para as canalizar para os seus programas de continuidade, algumas mais brutais e totalitárias que outras, mas sempre repressivas.
Cabe-nos compreender estas manifestações e «O Tempo da Revolta» dá-nos pistas e interpretações que apelam à transformação. O que faz dele uma obra útil.
António Luís Catarino