Calma gentes!, De Maistre, Xavier de seu nome, que, previdente nas suas primeiras edições assinava somente com X, é irmão de Joseph, o tal de má companhia e péssimos pensamentos, da índole de um Bossuet mas para pior... Este senhor é somente um romântico empedernido, com vida complicada, fora do penico institucional, marcado por alguma libertinagem, combates nas guerras europeias e algo errante, o que desdiz a obra que o marcou: «Viagem à roda do meu quarto», de 1795.
Quis a época e o estado lastimoso do confinamento perpétuo que eu me dedicasse um pouco a este livrinho esgotado, tão bem elaborado que dá gosto tocar nele, embora exista outro da Tinta-da-China que ainda se vende por aí. Este, uma edição belíssima, encontra-se esgotado.
Comecemos a viagem então. Analisemos as causas do périplo e o aviso sensato do autor: «Iniciei e terminei uma viagem de quarenta e dois dias à roda do meu quarto. (...) Sente o meu coração uma satisfação inexprimível quando penso no número infinito de infelizes a quem ofereço um meio garantido contra o tédio e um alívio para os males de que sofrem. O prazer que se encontra ao viajar no próprio quarto está ao abrigo da inquieta inveja dos homens; é independente da fortuna.»
Nós, hoje, cidadãos do século XXI, enclausurados contra vontade sabemo-lo bem, quer pelas viagens intermináveis que poderão não serem apenas num pequeno quarto ou numa casa inteira, quer também pela ultrapassagem miserável dos quarenta e dois dias enfiados entre paredes. Onde já vão os quarenta e dois dias? Meses de confinamento dão para sentirmo-nos verdadeiramente incomodados e aterrados ao sairmos, fugindo à polícia, para respirarmos o ar do mar e do verde de um parque. Já conseguimos ser felizes dentro dos nossos quartos! Grande De Maistre!
Será possível esquadrinhar a topografia de um quarto? Principalmente quando se permanece nele quarenta e dois dias? Para De Maistre, é! Vejamos: «O meu quarto situa-se a quarenta e cinco graus de latitude, segundo as medições do Padre Beccaria; está orientado na direcção levante-poente; forma um quadrilongo de trinta e seis passos em volta, bem rentes à parede. A minha viagem, todavia, comportará mais, pois irei atravessá-lo muitas vezes de um lado ao outro, ou então diagonalmente, sem seguir regra ou método. - Farei mesmo ziguezagues e todas as linhas possíveis em geometria, se necessidade houver.» E depois perora sobre a infelicidade das pessoas que são muito donas dos seus passos e das suas ideias e que promovem planos rígidos das tarefas diárias. Não, De Maistre, homem moderno do início do século XIX, vê, com grande entusiasmo, a liberdade irónica aposta num simples quarto.
Depois de alguns voos metafísicos de quem não esquece os tempos passados na cama, as recordações que trazem à memória e testemunha (a cama) dos mais elevados estados de espírito, tantos quantos os momentos de depressão, lembra-nos que a obra versa sobre um périplo à volta do quarto, não sendo um mero exercício de solidão. Portanto, é com gosto que vemos passar à nossa frente e pelos nossos olhos a Madame de Hautcastel, a musa do escritor que se lhe refere, através do retrato, deste modo: «Ali, a minha mão tinha-se apoderado maquinalmente do retrato da Sra. de Hautcastel, e o outro (Xavier De Maistre, caracteriza-se como sendo duplo: um ser pensante e o animal) divertia-se a limpar o pó que o cobria. - Tal ocupação proporcionava-lhe um prazer tranquilo, que se fazia sentir na minha alma, muito embora esta estivesse perdida nas vastas planícies do céu.» Lembrem-se que ele era um romântico! Agora vem aí o animal, o tal outro, em cadência acelerada: «(...)interessando-se sempre mais pelo trabalho, pensou em pegar numa esponja molhada posta à sua disposição e em passá-la subitamente sobre as sobrancelhas e os olhos, - sobre o nariz, - sobre as faces, - sobre aquela boca; ah, meu Deus! o coração bate-me: sobre o queixo, sobre o peito: foi questão de um instante; todo o rosto pareceu renascer e sair do nada. - A minha alma precipitou-se do céu como uma estrela cadente; encontrou o outro num êxtase arrebatado que conseguiu aumentar, partilhando-o.»
Digam agora que Xavier De Maistre era um romântico! Por testemunhas destes devaneios no quarto ainda estavam presentes Joannetti, um criado cujas humilhações o autor não compreende como as suporta, mesmo sendo ele a cometê-las, e a sua cadela Rosine, muito mais bem tratada que o primeiro, diga-se.
E mais não escrevo, que isto de estar confinado no início século XIX era bem mais perigoso do que se pensa. Um clássico a ler nos tempos que correm. Um verdadeiro mapa de passos confinados.
Editora &etc, Maio de 2002
Esgotado
António Luís Catarino
24 de Março de 2021