quarta-feira, dezembro 30, 2020

«Fósforos e Metal sobre Imitação de Ser Humano», de Filipa Leal

 

Foto: Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (FLUP)

Literalmente: uma folha deste livro fez-me um corte no dedo. Não chegarei ao ponto de o mostrar, mas será uma boa metáfora da última poesia de Filipa Leal. De livro para livro a poeta vai avisando da explosão iminente, da ira contida. Desde, pelo menos (e sublinho, com dúvida), do «Vem à Quinta-feira» que se nota uma contenção, uma contenda íntima que a sua escrita não esconde. Portanto, a sua poesia torna-se perigosa no sentido em que nos podemos ferir seriamente. Não será esse o desígnio último da poesia? Encontrarmo-nos violentamente com as sensações? 

Desde 2015, ano fatídico deste país, que assistiu impávido e impotente aos seus filhos emigrarem para sobreviver, que Filipa Leal se rebelou com o já conhecidíssimo «Europa» e a sua continuidade com «Europa, segunda carta», em 2019, até este tão excelente como indefinível «Fósforos e Metal sobre Imitação de ser Humano». Filipa senta a Europa no seu colo e diz-lhe, tão baixinho que nos esforçamos para ouvir, «Europa, senta-te aqui. Vamos conversar, vamos fazer terapia de casal.(...)» e adivinhamos o seu esgar de desprezo para uma entidade que tem tanto de falsa como de fraca, mas que ainda assim lhe levou amigos e talvez dos nossos melhores filhos. Europa que, na mitologia grega, era raptada e seduzida por Zeus, é hoje completamente livre na sua arrogância? Somos nós?

A Filipa Leal que nos diz que «dificilmente viverei na absurda arrumação dos quartos, dos livros dos deuses. A cabeça é como a casa que se limpa quando a memória instala o caos. (...)» é a que igualmente nos atira à cara «Eu hei-de ser galega, portugueses, meus irmãos,/e por elas hei-de me calar, calar-me definitivamente,/salvando-me tanto mais assim, e às cabras, lendo bem,/lendo cada vez melhor o manual de intervenção cirúrgica/fundamental para salvar cabras de pessoas como eu». O recorrer a um silêncio tornado ruidoso. Demasiado ruidoso, este calar auto infligido? Não pressentem, pois, a explosão?

A poeta que aqui se apresenta quis esculpir o poema em forma de epílogo: «No princípio, até correu bem. Trabalhava contente no meu atelier imaginário. Depois, houve um problema. O problema eram as mãos perfeitamente limpas sobre o teclado. Não é o que se espera de um escultor».

E a contenção, o refreamento que antecede a ferida nas nossas mãos (possivelmente nada limpas): «Uma pessoa promete calar e até cala/mas depois há a segunda e a terceira tinta./Somos cada vez mais grisalhos com cabelo cada vez/mais escuro. Escuro como tudo».

Não pressentem pois a explosão?
António Luís Catarino
30 de Dezembro de 2020