domingo, outubro 18, 2020

Samuel Paty


Samuel Paty era um professor de História parisiense e foi decapitado anteontem por um tchetcheno de 18 anos com a cumplicidade dos pais de alguns alunos entretanto detidos para averiguações. Crime: o de, numa aula sobre a liberdade de expressão, esse grande crime de cidadania que (ainda) se aprende nas escolas públicas, ter mostrado algumas imagens de Maomé a partir da Charlie Hebdo cujas caricaturas vitimaram 12 pessoas reunidas no jornal e cujo julgamento dos assassinos decorre em França. Tenho publicado, aqui no Facebook, algumas considerações sobre o que aconteceu então. Mas o que me leva a uma grande revolta pessoal não é tanto Paty ser um colega meu. É a instituição do medo como norma para o pensamento livre. E não se pense, nesta hora de raiva sentida onde o populismo poderia medrar, que a «culpa» vem só dos muçulmanos radicais. Vem igualmente dos conservadores radicais de todas as cores que veem o ensino da cidadania uma disciplina a abater. 
Ainda na sexta-feira, numa aula de História, debatendo com os meus alunos a presença muçulmana na Península Ibérica, analisámos esta miniatura do século XV que mostra Maomé a pregar em Meca. Está, ao que penso e se não me engano, na Turquia. Existem mais três imagens, de origem muçulmana, do profeta. Muitas outras estão apagadas, mutiladas até, por indivíduos que nada têm na cabeça, mas que não se coíbem de apagar as outras! Mas isto é assim. Qualquer dia, um parvo qualquer (aqui a palavra «parvo» tem todo o seu sentido literal) atentará contra a imagem de Deus de Miguel Ângelo. Com os mesmos argumentos de quem assassinou um professor de História. Tempos perigosos estes mas que, por isso mesmo, devemos arredar o medo que nos querem impor e ocupar os lugares dos populismos e da extrema-direita. Na rua, se preciso for, espaço matricial grego da liberdade.

António Luís Catarino
Coimbra, 18 de outubro de 2020