Desaconselho vivamente «A Rainha
Ginga - E de como os africanos inventaram o mundo», de Agualusa, a xenófobos e a quem chora pelo império perdido. Não o
compreenderão. Antes de iniciar a minha habitual ficha de leitura (cujas estão
a alcançar mínimos históricos de «gostos» aqui no Facebook) das obras que vou
lendo, informo-vos da coincidência, ou talvez nem tanto, de estar a ler,
igualmente, a «História de África» de J.D. Fage. Mais tarde falarei dela aqui. Mas foi enorme o entusiasmo de encontrar pontos de contacto entre um livro e outro.
A rainha Ginga levou muita gente a
falar dela durante séculos, sendo Sade um dos figurões que a realçou como um
exemplo de «luxúria selvagem», seja lá o que isso quereria dizer nas
elucubrações libidinosas e recreativas do Marquês. Não vejo assim Ginga, embora
hoje sorriamos com o seu harém de travestis, visto que se era rainha teria de
comportar-se como um rei e, sendo rei, teria de ter o seu harém de mulheres.
Compreendo Ginga como uma mulher inteligentíssima, política e diplomaticamente
hábil, ambiciosa e determinada. Por paradoxal que nos pareça hoje, essa ambição
que a levou muitas vezes a eliminar adversários até da sua própria família, não
a impediu de se aconselhar e dialogar com indivíduos de opinião diferente e de
diferentes etnias e paragens; africanas, mas também europeias e americanas,
inclusive. Promotora de grandes «camas», isto é, de assembleias de conselhos
tomava aí as decisões políticas mais audazes que apontavam para uma feroz
independência da região de Angola face aos portugueses.
Ora, essa feroz oposição ao
império português com o seu rasto de esclavagismo, violências, castigos,
estupros, torturas, conversões forçadas e conquistas territoriais, fez com que
Ginga construísse uma fina teia política, ora de negociações difíceis, ora de diálogos
cuidadosos, para levar a liberdade a um povo que se via confinado cada vez mais
para o interior de Angola, à medida que os portugueses, a partir principalmente
de Luanda e do litoral, progrediam para leste em busca de ouro, marfim e escravos
para Lisboa, plantações e minas do Brasil.
O livro de José Eduardo Agualusa
oferece-nos uma Rainha Ginga, dura, implacável, é certo, mas determinada a um
fim que a obrigava a difíceis e efémeras alianças com piratas (lá está a
argelina República de Salé onde pontificavam corsários, piratas, flibusteiros
de toda a espécie e de todo o mundo, entre eles portugueses fugidos da opressão
social e religiosa), holandeses apostados em atacar os territórios portugueses
do império filipino da União Ibérica, índios brasileiros aliados, árabes e
muçulmanos, nações africanas que lhe prestavam uma espécie de vassalagem,
terríveis «jagas» guerreiros que se opunham a todos, mas que sabiam cumprir
acordos, e até portugueses, mercenários e jesuítas, que fugiam da inquisição e
do rei fosse ele de nome Filipe ou João IV. E, em Olinda, Domingos Vaz tem este
diálogo com Lobo, num Brasil holandês:
« - Não sentes? – insistiu Lobo. –
Não sentes quando respiras?
- O quê?!
- O medo, meu amigo! Já não cheira
a medo!
Dei-lhe razão. No tempo dos
portugueses o medo infiltrava-se na roupa, colava-se à pele, a todas as horas,
mesmo quando dormíamos. Era tão presente, tão inevitável, que nem nome lhe
dávamos.»
Sim, exportámos medo e trouxemos
para Lisboa e Terras de Vera Cruz a escravatura, juntamente com ouro e prata,
especiarias, com que engordámos uma pobre elite iletrada, rancorosa e invejosa
sem saber produzir nada que se visse, menos o mesmo ouro e a prata com que se
espraiva, pela tarde, no Rossio. As consequências ainda hoje as estamos a
pagar. Contas de outro rosário. Mas houve, lá longe de Portugale pelo império
onde o sol nunca se punha, quem resistisse e a Rainha Ginga está nesse panteão,
junto com outros que no Brasil, em África e nas Índias o souberam fazer, pondo
em causa tráficos infames e ocupações ilegítimas.
No entanto, no livro de Agualusa,
ou talvez pelo que foi aqui dito, Domingos Vaz, personagem principal, sente
terminar a sua fé. E não é por Muxima ou por outra mulher; é somente pelo que
vê à sua volta, principalmente pela opressão inquisitorial e colonial ou pela
táctica de conversão dos povos, exercida pelos jesuítas. Mesmo que seja difícil,
para nós, acreditar que um padre perca a sua fé de um capítulo para outro, o
autor, a páginas 206, avisa-nos: «Um homem sábio, porém destituído de fé,
falhará sempre. Um homem de fé, pelo contrário, está destinado a triunfar por
mais que lhe falte o engenho e a fortuna – ou mesmo o juízo.» Premonitório. A
Ginga não lhe faltou o engenho, nem provavelmente a fé animista, se assim se
pode utilizar aqui o termo «fé», mas faltou-lhe fortuna. Aliada aos holandeses,
de alguns «jagas» que lhe continuavam fiéis, dos barcos piratas de Jol, dos
índios Janduí e suserana de outros reinos negros, na última batalha que travou
perto da baía de Luanda, perdeu mesmo a guerra por um mito; esse mito era
Salvador Correia de Sá que reconquistou Angola com tropas portuguesas
esfomeadas, maltrapilhas, com poucas armas e munições que seriam facilmente
derrotadas se o mito não se sobrepusesse à realidade e o nome do militar não desse
origem a um temor injustificado. Talvez uma lição política já tardia a Ginga e
aos seus conselheiros e aliados. De qualquer modo, o final da batalha, que não
da guerra, estava traçado. A belíssima Ginga nunca foi aprisionada.
A resistência continuou por
séculos, como sabemos, e os treze últimos anos do império africano matou e
arruinou dezenas de milhar dos nossos jovens.
Há, todavia, uma frase no livro de
José Eduardo Agualusa que me ficou presente e que vos convido a pensá-la,
embora saiba que a conclusão será impossível de ser encontrada. É quando o
governador holandês João Maurício de Nassau (nome aportuguesado) disse a
Domingos Vaz, aliado de Ginga e já pressentindo a derrota: «Talvez nos tenhamos
enganado ao pensar que a natureza não seria mais madrasta para nós, os brancos,
os ocidentais, do que para os portugueses e os levantinos. A verdade é que os
portugueses sempre foram mais africanos do que europeus.»
A nossa tragédia como povo é que nunca fomos uma coisa nem outra.
António Luís Catarino
Coimbra, 3 de Outubro de 2010