Quis Artaud mostrar, em 1933, a peste verdadeira: a do mundo e dos corpos confinados e torturados no quotidiano. Tal como hoje, a epidemia, ou melhor, as epidemias, as pestes que se nos apresentam, são o espelho de uma sociedade profundamente doente. Tão doente que não sabe falar de outro tema. Nem é já o medo da morte, mas sim do outro, do vizinho, do amigo, dos amantes, dos entes próximos porque a família desconjuntou-se rapidamente. O vazio está aí. Recuemos pois a Artaud e leia-se algo de diferente da mediocridade do que vamos observando. Ou de como a descrição do teatro e da peste nos pode ser arremetido à cara quase um século depois. Por paradoxal que seja, uma frescura pestífera.
«(...) Como a peste, o teatro é uma crise que se desenlaça com a morte ou com a cura. E a peste é um mal superior porque é uma crise completa, e depois dela nada mais resta a não ser a morte ou uma extrema purificação. De igual forma, o teatro é um mal porque equilíbrio supremo, não adquirível sem destruição. Convida o espírito a um delírio que lhe exalta as energias; e para terminar, só podemos ver que a acção do teatro, como a da peste, sob o ponto de vista humano é benéfica porque, levando os homens a verem-se como são, faz cair a máscara, põe à mostra a mentira, a frouxidão, a baixeza e a hipocrisia; sacode a inércia asfixiante da matéria, que chega às mais claras certezas dos sentidos; e revelando a colectividades o seu poder sombrio, a sua força oculta, convida-as a assumir perante o destino uma atitude heróica e superior que, sem isto, nunca teriam tido.
E o problema que agora se põe é saber se neste mundo que escorrega, se suicida sem dar por isso, será encontrado um núcleo de homens capazes de impor esta noção superior do teatro que a todos nós restituirá o equivalente natural e mágico dos dogmas em que deixámos de acreditar.»
Antonin Artaud, excerto de «O Teatro e a Peste», 1933, em «Eu, Antonin Artaud», Sistema Solar
Tradução de Aníbal Fernandes
No fim desta conferência que teve lugar numa sala da Sorbonne e em que Artaud foi vaiado tumultuosamente, encontrava-se Anaïs Nin que esperou, sentada e silenciosa, que as portas da sala deixassem de bater para conhecer Artaud. Nessa noite passearam à chuva os dois por Paris em direcção a um bar. Ela deixou-nos um relato muito impressivo do que se passou. Escreveu: «Tinha o rosto em convulsões de angústia e os cabelos ensopados em suor. Os olhos dilatavam-se, enrijava os músculos, os dedos lutavam para conservar a flexibilidade. Fazia-nos sentir a secura e o ardor da sua garganta, o sofrimento, a febre, o fogo das suas entranhas. Estava em tortura. Berrava. Delirava. Representava a sua própria morte, a sua própria crucificação.»
António Luís Catarino
Coimbra, 20 de Outubro de 2020