sexta-feira, outubro 30, 2020

«Ensaio sobre o dia conseguido», de Peter Handke

 


Pormenor do auto-retrato do pintor do século XVIII William Hogarth,
«Line of Beauty and Grace», citado por Peter Handke por causa do tempo, do dia conseguido.
«...E, na secretária, uma pedra chata, arredondada, vinda das margens do Lago Constança: no granito escuro, uma fina sinuosidade diagonal, como que lúdica, desviando-se da recta exactamente no momento certo, uma veia branca como a cal que separa e mantém unidas as metades do seixo.»

Eu leio Peter Handke. E em cada leitura que faço, vejo o «Asas do Desejo» de Wenders, filme do qual fez o guião. Os espaçamentos são os mesmos, os diálogos e a cadência levam-nos a essa sensação estranha. O ensaio a que o autor deu nome é interessante. Creio que o fez como tentativa experimental de projectar o dia, preocupação muito presente em poetas e filósofos. Começa, na página 10, a questionar-nos se já vivemos um via «conseguido», tendo a certeza que à partida terá imensas respostas positivas de quem pensa que esse dia pode ser apenas «belo», «feliz», «despreocupado», «superado» ou o alívio de um «ultrapassado». Mais um! É evidente que quem se mete por estes atalhos saberá que vai dar a um caminho seguramente teológico ou, no mínimo, intangível. E não é sem surpresa que esbarramos na epistolografia de Paulo quando este escreve que um dia conseguido será o «erguer o olhar» na procura do «apreender ascendental» pelo que, inferimos, um dia conseguido para o cristianismo será o olhar de baixo para cima. É lá que se encontra o dia.

Segue-se o grego «kairos», expressão terrivelmente difícil de explicar em português e que poderíamos traduzir por aquele «instante» ou átomo de tempo conseguidos, constantes que se tornam em divindades mais fortes que os deuses, segundo Handke este é o «deus do agora». Depois de uma passagem por Cristo em que o tempo se transforma em eternidade, desce o autor para o estafado «plantar uma árvore, fazer um filho, escrever um livro», que pode, aliás e à boa maneira das sociedades ocidentais contemporâneas, fazer-se tudo isso tudo num só dia, sem qualquer problema de abandonar o ritmo de trabalho para o fazer, digo agora eu! Se isso é um «dia (a vida?) conseguido (a)» é muito discutível. E ainda mais problemático é vermos pessoas com 30 anos a proclamar «j’ai réussi ma vie» que é o mesmo que transpor para os mercados as «obras completas» de poetas com 40 anos de idade ou menos ainda.

O latino «carpe diem», tirando o facto de ser, talvez, o que se aproxime mais do «dia conseguido» de Peter Handke, não deixa de ser recuperável para uma frase de uma t’shirt ou de um pin, ou ainda de uma frase que acompanha um perfil de um site de namoro rápido! No fundo, o que vemos na procura dessa etapa é uma luta constante com o «anjo do dia», não fosse ele o verdadeiro autor de «Asas do Desejo», e que o aproxima cada vez mais ao espiritual, ao que não é mensurável materialmente. O exemplo que dá é interessante: se no comboio, eu destino a viagem também à leitura de um livro, planificando para atingir um dia verdadeiramente conseguido e acabo a viagem a meio da leitura esquecendo-me do livro no comboio, isso poderá colocar em causa a meta do «dia conseguido»? Para o autor, não. Antes pelo contrário. Poder-se-á encontrar outras leituras na ausência de resposta para «aquele» livro em particular. Aqui estaremos em luta com o anjo do dia. Ou caminhando por outros caminhos não menos plenos de interesse.

Handke no final do ensaio de 51 páginas, acaba por nos informar que não teve nunca um dia conseguido. Porque se perdem linhas que desenhamos para esse dia. Mas ao ser assim, teremos um dia conseguido pela negação de o procurar. Finaliza ele: «- E agora perdes finalmente a linha por completo. Regressa ao livro, à escrita, à leitura. Aos textos primitivos em que é, por exemplo, dito: ‘’Deixa ressoar a palavra, sê-lhe fiel – seja o momento favorável ou desfavorável.’’ Já viveste um dia conseguido? Através do qual o instante conseguido, a vida conseguida, talvez até a eternidade conseguida se reuniriam de uma vez por todas?»

Peter Handke. «Ensaio sobre o dia conseguido» foi publicado pela Relógio D'Água.

António Luís Catarino

Coimbra, 30 de Outubro de 2020