Eu leio Peter Handke. E em cada leitura que faço, vejo o
«Asas do Desejo» de Wenders, filme do qual fez o guião. Os espaçamentos são os
mesmos, os diálogos e a cadência levam-nos a essa sensação estranha. O ensaio a
que o autor deu nome é interessante. Creio que o fez como tentativa experimental
de projectar o dia, preocupação muito presente em poetas e filósofos. Começa,
na página 10, a questionar-nos se já vivemos um via «conseguido», tendo a
certeza que à partida terá imensas respostas positivas de quem pensa que esse
dia pode ser apenas «belo», «feliz», «despreocupado», «superado» ou o alívio de
um «ultrapassado». Mais um! É evidente que quem se mete por estes atalhos
saberá que vai dar a um caminho seguramente teológico ou, no mínimo, intangível.
E não é sem surpresa que esbarramos na epistolografia de Paulo quando este
escreve que um dia conseguido será o «erguer o olhar» na procura do «apreender ascendental»
pelo que, inferimos, um dia conseguido para o cristianismo será o olhar de
baixo para cima. É lá que se encontra o dia.
Segue-se o grego «kairos», expressão terrivelmente difícil
de explicar em português e que poderíamos traduzir por aquele «instante» ou
átomo de tempo conseguidos, constantes que se tornam em divindades mais fortes
que os deuses, segundo Handke este é o «deus do agora». Depois de uma passagem
por Cristo em que o tempo se transforma em eternidade, desce o autor para o
estafado «plantar uma árvore, fazer um filho, escrever um livro», que pode,
aliás e à boa maneira das sociedades ocidentais contemporâneas, fazer-se tudo
isso tudo num só dia, sem qualquer problema de abandonar o ritmo de trabalho
para o fazer, digo agora eu! Se isso é um «dia (a vida?) conseguido (a)» é
muito discutível. E ainda mais problemático é vermos pessoas com 30 anos a proclamar
«j’ai réussi ma vie» que é o mesmo que transpor para os mercados as «obras
completas» de poetas com 40 anos de idade ou menos ainda.
O latino «carpe diem», tirando o facto de ser, talvez, o que
se aproxime mais do «dia conseguido» de Peter Handke, não deixa de ser
recuperável para uma frase de uma t’shirt ou de um pin, ou ainda de uma frase
que acompanha um perfil de um site de namoro rápido! No fundo, o que vemos na
procura dessa etapa é uma luta constante com o «anjo do dia», não fosse ele o
verdadeiro autor de «Asas do Desejo», e que o aproxima cada vez mais ao
espiritual, ao que não é mensurável materialmente. O exemplo que dá é interessante:
se no comboio, eu destino a viagem também à leitura de um livro, planificando para
atingir um dia verdadeiramente conseguido e acabo a viagem a meio da leitura esquecendo-me
do livro no comboio, isso poderá colocar em causa a meta do «dia conseguido»?
Para o autor, não. Antes pelo contrário. Poder-se-á encontrar outras leituras
na ausência de resposta para «aquele» livro em particular. Aqui estaremos em
luta com o anjo do dia. Ou caminhando por outros caminhos não menos plenos de
interesse.
Handke no final do ensaio de 51 páginas, acaba por nos
informar que não teve nunca um dia conseguido. Porque se perdem linhas que
desenhamos para esse dia. Mas ao ser assim, teremos um dia conseguido pela
negação de o procurar. Finaliza ele: «- E agora perdes finalmente a linha por
completo. Regressa ao livro, à escrita, à leitura. Aos textos primitivos em que
é, por exemplo, dito: ‘’Deixa ressoar a palavra, sê-lhe fiel – seja o momento
favorável ou desfavorável.’’ Já viveste um dia conseguido? Através do qual o
instante conseguido, a vida conseguida, talvez até a eternidade conseguida se
reuniriam de uma vez por todas?»
António Luís Catarino
Coimbra, 30 de Outubro de 2020