terça-feira, julho 28, 2020

«Vida de Ramon», de sobrenome Llull, de Luísa Costa Gomes


Leyaonline - Vida de Ramon - GOMES, LUÍSA COSTA
«Vida de Ramon», de Luísa Costa Gomes

É um livro empolgante e de um rigor linguístico e histórico assinalável. Já há muito que deveria ter-me debruçado, nestas notas de leitura que faço para este blogue, por Luísa Costa Gomes como autora que leio desde sempre. Mas quis que o fizesse a este «Vida de Ramon». Luísa Costa Gomes leva-nos por mão amiga do leitor para os finais do século XIII e início do XIV, século este que veio a ser dos mais infames da História. Não só por causa da peste, mas também. E nunca saberemos, porque de comparação se trata, se o século XX não lhe ficou à frente em lástima. Adiante.

Já se vislumbra pela biografia do catalão Ramon Llull, mais profeta da Unidade do que filósofo, embora precisasse em pormenor, nos seus quase duzentos livros editados, o argumentário católico para a conversão de todos os infiéis à face da terra, principalmente a dos sarracenos, que não seria uma vida de curso fácil. Ficaremos na Ars Magna ou a Ars Generis em que apresenta a sua visão muito particular da maneira mais astuta de converter os maometanos. No fundo, fingindo ser um deles para melhor os ganhar para a fé católica, já envolta em graves conflitos internos. Não faltou quem discordasse da estratégia.

Ramon Llull nem sempre foi um fervoroso cristão e franciscano, embora a autora na laboriosa pesquisa que fez sobre ele não tenha a certeza que tenha aderido formalmente à fraternidade. São Francisco já teria morrido e os irmãos lutavam entre si pela continuidade entre espirituais e reformistas. Ganharam os primeiros e com uma regra bem longe do que queria o seu fundador e mais próxima até dos beneditinos. É poca em que os cátaros foram massacrados e o cisma era uma realidade já no cristianismo. A corrupção, o luxo e os pecados veniais, mais uns do que outros bem mortais, grassavam pela igreja.

Llull, à semelhança de Saulo e depois Paulo, Santo Agostinho, talvez Aquino e Francisco, teve uma vida considerada dissoluta e dada à trova e ao amor. Depois, também teve uma espécie de «estrada de Damasco» e aí vai ele, que viu Deus, ou o Senhor Cristo incarnado. Para o caso não interessa. Tornou-se um profeta dado à filosofia. Tanta pancada apanhou que a sua vida me lembra mais a do Cândido industriado por Pangloss do que propriamente a de um mártir. Não que a conversão do libertino fosse fácil. Escreve Luísa Costa Gomes: «A conversão de Ramon deu muito trabalho ao Nosso Senhor. Ou porque fosse avesso a toda a contrição e a toda a penitência, ou porque o Crucificado não fizesse acompanhar as suas aparições do necessário estado de graça, ou de exibições vistosas, o certo é que, como se diz na Vida Coetanea,[a vida de Llull, ditada por ele e atribuída a um monge: Vauvert] depois da visão terrífica, Ramon continuou a fazer a sua vida.»

Sendo maiorquino e convivendo de perto com mouros e sarracenos (para usar os termos mais utilizados por Llull), mais as iniquidades cristãs e as cruzadas, lutou, até ao fim da sua vida, pela unidade religiosa com um deus único e verdadeiro, visto que Alá era um falso deus, arregimentando hereges cristãos, maometanos, sufis, judeus e outros para o deus cristão. Para isso, uniria todo o mundo sob um único deus, através de uma única cruzada redentora e salvífica para com Jerusalém, tomando a Síria, a Arábia, a Palestina, a Pérsia e sei lá que mais, uma única ordem militar e um único livro, o dos Evangelhos e o dos antigos profetas. Constantinopla tornar-se-ia de novo católica! Aprendeu árabe através do ensinamento de um escravo que ele comprou e que queria ser livre a todo o transe (esta mania dos escravos!) e que atirava desesperado a roupa ao chão, clamando a sua condição de ‘Abd! Abd! Abd!’. Várias vezes preso e mal visto pelos papas e príncipes, aturavam-lhe os sonhos e os desvelos religiosos, foi espancado na Berbéria, metido nas latrinas de condenados meses a fio, arrancaram-lhe a longa barba e despiram-no amiúde, lapidado algumas vezes, naufragado, ele nunca soçobrou na sua fé e na sua escrita prolixa, também ela perpassada pela Unidade. Contra Averróis, principalmente mas não só. Pelo aristotelismo e pelos seus, cada vez mais numerosos, seguidores. A história deu-lhe razão: Averróis foi morto pelos radicais islâmicos, os Templários foram extintos e remetidos para a Ordem Hospitalária e a quinta e sexta cruzada uma realidade, triste é certo, mas que reuniu os príncipes e reis da altura. A unidade, enfim! Trecho de «Vida de Ramon»: «[Quando chegou a Viena]…Trazia proposições necessárias, ordenadas numa petição ao Concílio Geral para a conquista da Terra Santa: queria a instituição de colégios em Roma, Paris e Toledo, a fusão das ordens militares e que se reservasse uma parte dos rendimentos da Igreja ao empreendimento de uma cruzada universal; queria, no que dizia respeita à reforma dos costumes do clero, que fosse proibido de acumular prebendas, suprimisse as despesas ociosas, se vestisse com uniformidade e modéstia; queria o herói da luta antiaverroísta que o ensino da filosofia de Ibn-Ruchd e dos seus divulgadores e comentadores, que se tornara, entretanto, quase corrente na Faculdade das Artes, fosse inteiramente proibido.»

Podemos, aos olhos de hoje, achá-lo uma personagem fantástica, acusação que lhe fizeram os apóstolos da Razão, ele que queria fundir a Razão com Religião numa última tentativa de uniformização, mas não deixa de ser comovente a figura quixotesca que Luísa Costa Gomes nos traz pela sua mão e pela sua escrita notável.

Por alguma razão tenho-a lido. Por alguma razão tenho comigo o seu último livro. Mas não deixem de ler este «Vida de Ramon».

António Luís Catarino
Coimbra, 26 de Julho de 2020