«Vida de Ramon», de Luísa Costa Gomes
É um livro empolgante e de um rigor linguístico e histórico
assinalável. Já há muito que deveria ter-me debruçado, nestas notas de leitura que
faço para este blogue, por Luísa Costa Gomes como autora que leio desde sempre.
Mas quis que o fizesse a este «Vida de Ramon». Luísa Costa Gomes
leva-nos por mão amiga do leitor para os finais do século XIII e início do XIV,
século este que veio a ser dos mais infames da História. Não só por causa da
peste, mas também. E nunca saberemos, porque de comparação se trata, se o
século XX não lhe ficou à frente em lástima. Adiante.
Já se vislumbra pela biografia do catalão Ramon Llull,
mais profeta da Unidade do que filósofo, embora precisasse em pormenor, nos
seus quase duzentos livros editados, o argumentário católico para a conversão de
todos os infiéis à face da terra, principalmente a dos sarracenos, que não
seria uma vida de curso fácil. Ficaremos na Ars Magna ou a Ars
Generis em que apresenta a sua visão muito particular da maneira mais
astuta de converter os maometanos. No fundo, fingindo ser um deles para melhor
os ganhar para a fé católica, já envolta em graves conflitos internos. Não faltou quem discordasse da estratégia.
Ramon Llull nem sempre foi um fervoroso cristão e franciscano,
embora a autora na laboriosa pesquisa que fez sobre ele não tenha a certeza que
tenha aderido formalmente à fraternidade. São Francisco já teria morrido e os
irmãos lutavam entre si pela continuidade entre espirituais e reformistas.
Ganharam os primeiros e com uma regra bem longe do que queria o seu fundador e
mais próxima até dos beneditinos. É poca em que os cátaros foram massacrados e o cisma era
uma realidade já no cristianismo. A corrupção, o luxo e os pecados veniais,
mais uns do que outros bem mortais, grassavam pela igreja.
Llull, à semelhança de Saulo e depois Paulo, Santo
Agostinho, talvez Aquino e Francisco, teve uma vida considerada dissoluta e
dada à trova e ao amor. Depois, também teve uma espécie de «estrada de Damasco»
e aí vai ele, que viu Deus, ou o Senhor Cristo incarnado. Para o caso não
interessa. Tornou-se um profeta dado à filosofia. Tanta pancada apanhou que a
sua vida me lembra mais a do Cândido industriado por Pangloss do que
propriamente a de um mártir. Não que a conversão do libertino fosse fácil. Escreve
Luísa Costa Gomes: «A conversão de Ramon deu muito trabalho ao Nosso Senhor.
Ou porque fosse avesso a toda a contrição e a toda a penitência, ou porque o Crucificado
não fizesse acompanhar as suas aparições do necessário estado de graça, ou de
exibições vistosas, o certo é que, como se diz na Vida Coetanea,[a vida de Llull, ditada por ele e
atribuída a um monge: Vauvert] depois da visão terrífica, Ramon
continuou a fazer a sua vida.»
Sendo maiorquino e convivendo de perto com mouros e
sarracenos (para usar os termos mais utilizados por Llull), mais as
iniquidades cristãs e as cruzadas, lutou, até ao fim da sua vida, pela unidade
religiosa com um deus único e verdadeiro, visto que Alá era um falso deus,
arregimentando hereges cristãos, maometanos, sufis, judeus e outros para o deus
cristão. Para isso, uniria todo o mundo sob um único deus, através de uma única
cruzada redentora e salvífica para com Jerusalém, tomando a Síria, a Arábia, a
Palestina, a Pérsia e sei lá que mais, uma única ordem militar e um único livro,
o dos Evangelhos e o dos antigos profetas. Constantinopla tornar-se-ia de novo católica! Aprendeu árabe através do
ensinamento de um escravo que ele comprou e que queria ser livre a todo o
transe (esta mania dos escravos!) e que atirava desesperado a roupa ao chão,
clamando a sua condição de ‘Abd! Abd! Abd!’. Várias vezes preso e mal
visto pelos papas e príncipes, aturavam-lhe os sonhos e os desvelos religiosos, foi espancado na Berbéria, metido nas latrinas de condenados meses a fio, arrancaram-lhe
a longa barba e despiram-no amiúde, lapidado algumas vezes, naufragado, ele
nunca soçobrou na sua fé e na sua escrita prolixa, também ela perpassada pela Unidade.
Contra Averróis, principalmente mas não só. Pelo aristotelismo e pelos seus, cada vez mais
numerosos, seguidores. A história deu-lhe razão: Averróis foi morto pelos
radicais islâmicos, os Templários foram extintos e remetidos para a Ordem
Hospitalária e a quinta e sexta cruzada uma realidade, triste é certo, mas que
reuniu os príncipes e reis da altura. A unidade, enfim! Trecho de «Vida de
Ramon»: «[Quando chegou a Viena]…Trazia proposições necessárias,
ordenadas numa petição ao Concílio Geral para a conquista da Terra Santa:
queria a instituição de colégios em Roma, Paris e Toledo, a fusão das ordens militares
e que se reservasse uma parte dos rendimentos da Igreja ao empreendimento de
uma cruzada universal; queria, no que dizia respeita à reforma dos costumes do
clero, que fosse proibido de acumular prebendas, suprimisse as despesas
ociosas, se vestisse com uniformidade e modéstia; queria o herói da luta
antiaverroísta que o ensino da filosofia de Ibn-Ruchd e dos seus divulgadores e
comentadores, que se tornara, entretanto, quase corrente na Faculdade das
Artes, fosse inteiramente proibido.»
Podemos, aos olhos de hoje, achá-lo uma personagem
fantástica, acusação que lhe fizeram os apóstolos da Razão, ele que queria
fundir a Razão com Religião numa última tentativa de uniformização, mas não deixa de ser comovente a figura quixotesca
que Luísa Costa Gomes nos traz pela sua mão e pela sua escrita notável.
Por alguma razão tenho-a lido. Por alguma razão tenho comigo
o seu último livro. Mas não deixem de ler este «Vida de Ramon».
António Luís Catarino
Coimbra, 26 de Julho de 2020