segunda-feira, agosto 17, 2020

Ler um suicídio. Ver um suicídio.

Catedral de Notre-Dame | Suíça Turismo

 Vista do miradouro da Catedral de Lausanne

Ler a notícia de um suicídio é uma coisa. Ver um suicídio é outra. Bate-nos forte cá dentro. No dia 9 de Agosto, subíamos para a Catedral de Lausanne ao fim da tarde. Havia à frente da porta principal um promontório onde se poderia ver grande parte da cidade, o lago Léman e os Alpes já despedidos, devido às alterações climáticas, das suas neves perpétuas. Era o último dia que passávamos em Lausanne.

Saímos de casa pelas vinte. Poucos minutos depois a polícia barra-nos o caminho no passeio para peões. Achámos estranho porque víamos uma alteração de trânsito que nos pareceu um pequeno choque entre automóveis e uma moto. Mas isso era na via rápida, não no passeio. Na sequência da conversa com o polícia tentando perceber a razão de não podermos circular, vimos, então, o corpo de um homem que me pareceu de cerca de quarenta anos. Vestia calças castanhas e um pólo creme. Faziam-lhe a reanimação. Um transeunte disse-nos que se tratava de um suicídio. O homem tinha-se atirado de um viaduto de trinta metros de altura e encontrava-se logo atrás de um Audi e ladeado por uma moto. O automobilista e o «motard» estavam nitidamente alterados. A polícia interrogava as testemunhas. Teriam visto o corpo a cair? Certamente que sim. No viaduto, por cima de nós, a polícia também fechou o trânsito e falava com um grupo de adolescentes que viram o homem a saltar. Havia jovens de lágrimas nos olhos, outros que choravam abertamente, mesmo uma hora depois do que aconteceu e quando passávamos pelo viaduto que pensávamos então livre.

A reanimação continuava e convencemo-nos, à medida que descíamos da Catedral e ainda sob comoção, que todo aquele acto de reanimação era para descansar os transeuntes que paravam nas redondezas. Alguém poderia sobreviver a uma queda daquela altura? Fiquei, ficámos, transtornados com a vista do corpo inerte. Passou-me tudo pela cabeça; quem seria? Donde vinha, onde residia? Seria suíço, um migrante, um refugiado? Que levaria aquele homem a cometer um suicídio à vista de todos, sinal de profunda depressão e de raiva não contida? Aquele grito seria para nós? Terá sido por amor? Por desemprego ou por perder a casa? Gostaríamos de saber pelo menos o seu nome. Naquelas condições passa-nos tudo pela cabeça e ficamos prostrados, impotentes perante o corpo. Tentamos uma explicação o mais possível racional para o que acabámos de ver.

O que vimos foi um ponto final numa vida. Um homem pôs-lhe termo de uma forma brutal, dirigida a nós. Sem apelo, nem agravo. Não quis viver mais e nós nunca havemos de compreender isso, pensando que há sempre uma saída e mesmo que em certas situações, qualquer pessoa saudável, tenha pensado no seu próprio suicídio.

O poema cínico de Álvaro de Campos «Se te queres matar, por que não te queres matar?/ Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,/ Se ousasse matar-me, também me mataria.../Ah, se ousares, ousa! veio-me à memória quando olhei (...)» veio-me então à memória e fiz desfilar em mim alguns suicídios que marcaram, de uma forma indelével, os meus amigos que escolheram essa estrada da memória e da vida, pondo-lhe fim, de uma forma violentíssima. Dirigidos, provavelmente, aos que cá ficaram.

Aquela morte em Lausanne marcou-nos. Como seria esse o objectivo do homem que se suicidou. Uma pessoa não consegue esquecer.

António Luís Catarino

Atalaia, 17 de Agosto de 2020