Vista do miradouro da Catedral de Lausanne
Ler a notícia de um suicídio é uma coisa. Ver um suicídio é
outra. Bate-nos forte cá dentro. No dia 9 de Agosto, subíamos para a Catedral
de Lausanne ao fim da tarde. Havia à frente da porta principal um promontório
onde se poderia ver grande parte da cidade, o lago Léman e os Alpes já despedidos,
devido às alterações climáticas, das suas neves perpétuas. Era o último dia que
passávamos em Lausanne.
Saímos de casa pelas vinte. Poucos minutos depois a polícia
barra-nos o caminho no passeio para peões. Achámos estranho porque víamos uma
alteração de trânsito que nos pareceu um pequeno choque entre automóveis e uma
moto. Mas isso era na via rápida, não no passeio. Na sequência da conversa com
o polícia tentando perceber a razão de não podermos circular, vimos, então, o
corpo de um homem que me pareceu de cerca de quarenta anos. Vestia calças
castanhas e um pólo creme. Faziam-lhe a reanimação. Um transeunte disse-nos que
se tratava de um suicídio. O homem tinha-se atirado de um viaduto de trinta
metros de altura e encontrava-se logo atrás de um Audi e ladeado por uma moto.
O automobilista e o «motard» estavam nitidamente alterados. A polícia
interrogava as testemunhas. Teriam visto o corpo a cair? Certamente que sim. No
viaduto, por cima de nós, a polícia também fechou o trânsito e falava com um
grupo de adolescentes que viram o homem a saltar. Havia jovens de lágrimas nos
olhos, outros que choravam abertamente, mesmo uma hora depois do que aconteceu
e quando passávamos pelo viaduto que pensávamos então livre.
A reanimação continuava e convencemo-nos, à medida que
descíamos da Catedral e ainda sob comoção, que todo aquele acto de reanimação era
para descansar os transeuntes que paravam nas redondezas. Alguém poderia
sobreviver a uma queda daquela altura? Fiquei, ficámos, transtornados com a
vista do corpo inerte. Passou-me tudo pela cabeça; quem seria? Donde vinha,
onde residia? Seria suíço, um migrante, um refugiado? Que levaria aquele homem
a cometer um suicídio à vista de todos, sinal de profunda depressão e de raiva
não contida? Aquele grito seria para nós? Terá sido por amor? Por desemprego ou
por perder a casa? Gostaríamos de saber pelo menos o seu nome. Naquelas
condições passa-nos tudo pela cabeça e ficamos prostrados, impotentes perante o
corpo. Tentamos uma explicação o mais possível racional para o que acabámos de
ver.
O que vimos foi um ponto final numa vida. Um homem pôs-lhe
termo de uma forma brutal, dirigida a nós. Sem apelo, nem agravo. Não quis
viver mais e nós nunca havemos de compreender isso, pensando que há sempre uma
saída e mesmo que em certas situações, qualquer pessoa saudável, tenha pensado
no seu próprio suicídio.
O poema cínico de Álvaro de Campos «Se te queres matar, por
que não te queres matar?/ Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a
vida,/ Se ousasse matar-me, também me mataria.../Ah, se ousares, ousa! veio-me
à memória quando olhei (...)» veio-me então à memória e fiz desfilar em mim
alguns suicídios que marcaram, de uma forma indelével, os meus amigos que
escolheram essa estrada da memória e da vida, pondo-lhe fim, de uma forma violentíssima. Dirigidos, provavelmente, aos que cá ficaram.
Aquela morte em Lausanne marcou-nos. Como seria esse o
objectivo do homem que se suicidou. Uma pessoa não consegue esquecer.
António Luís Catarino
Atalaia, 17 de Agosto de 2020