Capa de «Le Lambeau» e o autor Philippe Lançon
A 7 de Janeiro de 2015, em Paris, dois verdadeiros imbecis,
os irmãos Kouachi, entram na sede da Charlie Hebdo aos gritos de «Allah
Akbar!» e assassinam doze pessoas ligadas à redação que estava reunida para
preparar o próximo número do jornal. Entre elas, morrem Wolinski, Cabu, Charb,
Elsa Cayat, Tignous e Honoré. Entre os feridos, cinco na totalidade,
conta-se Philippe Lançon que escreve este livro que foi publicado pela
Folio em 2018. Uma onda de indignação percorreu a Europa lançando a estranha
palavra de ordem «Je suis Charlie».
Devo dizer que eu fui sempre Charlie, mas recusei-me, talvez
por isso mesmo, a subscrever este estribilho que percorreu todas as redes sociais
e paredes do país. Não que não me tivesse emocionado com a morte de
desenhadores que eu aprendi a seguir e rir-me com eles. A morte de Wolinsky,
por exemplo, foi muito sentida. A Câmara do Porto, cidade onde eu vivia na ocasião,
fez-lhe uma enorme homenagem e tinha motivos: ele pertenceu, juntamente com
Gémeo Luís que fez trabalhos excelentes para a Deriva Editores, ao júri
do Porto Cartoon durante anos. Mas eu acompanhava-o desde sempre. Pelo
menos a partir de 1976 eu comprava sempre a Charlie Mensuel e, intermitentemente,
a Hebdo, juntamente com a revista Hara Kiri, Métal Hurlant ou Pilote.
Fui sempre um apaixonado pela Banda Desenhada. Francesa, principalmente.
Phillipe Lançon, traça neste livro, toda a história
desde o atentado onde foi seriamente ferido. Ficou sem maxilar inferior com uma
bala de Kalashnikov. Traduziria «Le Lambeau» por «A Retalho» ou «O
Pedaço» que foi o que lhe fizeram no hospital durante dois anos recompondo-lhe
tecidos queimados, dentes que desapareceram, ossos retirados do perónio para o
maxilar, titânio para juntar ao puzzle em que se tornou o maxilar. Ele
conta-nos os delírios da morfina, as paragens respiratórias, as infecções
constantes, o não poder beijar, beber um copo, a saliva a inundar-lhe as gazes
à volta do rosto. O horror que ele conta não desejaria ao meu pior inimigo. Jornalista
do Libération e da Charlie Hebdo fez reportagens de guerra como
na Síria, no Iraque, no Líbano, na Palestina e, porque não dizê-lo, na Colômbia
e no México dos cartéis de droga. Foi alvo de um grave ferimento de guerra,
como disse o bombeiro que o resgatou do mar de sangue em que se tornou a sala
da redacção, em Paris! A última crítica de livros que enviou para o Libération
era sobre «Insubmissão» de Houllebecq o que não deixa de ser
premonitório. Quem o leu (está editado em português) sabe do que falo. Poucos
minutos antes do ataque, estavam a discutir se valeria a pena dar voz a um reaccionário
nas páginas da Hebdo. O debate não chegou ao fim. Rajadas de metralhadora acabaram
com a possibilidade de editar fosse o que fosse. No chão, cadáveres de
desenhadores que conhecíamos bem, que nos rimos com eles que por vezes
sentíamos que se estavam a expor demasiado como quando publicaram as imagens de
Maomé de um desenhador dinamarquês alvo de uma fatwa, ou quando
incendiaram em 2011 a sede do jornal. Eles não queriam saber. Charb dizia para
Lançon que se fossem a dar importância às várias ameaças vindas de um leque
largo do espectro político francês o jornal não sairia nunca. E, sabêmo-lo hoje,
o jornal não respirava saúde económica reduzindo, semana a semana, as tiragens.
Portanto, não deixa de ser paradoxal, que todos dissessem à uma «Je suis
Charlie». E Lançon di-lo com todas as letras a hipocrisia de tal
palavra de ordem. Não eram todos Charlie. E no momento da grande causa comum
havia sempre quem dissesse «Eles puseram-se a jeito!» ou «Quando se brinca com
a religião…».
A palavra a Phillipe Lançon: «A 7 de Janeiro de 2015,
pelas 10:30, não havia muita gente em França para ser «Charlie». Os tempos
mudaram e nós não podíamos fazer nada. O jornal só tinha importância para
alguns fiéis, para os islamitas e para aquela espécie de indivíduos mais ou menos
civilizados, variando entre jovens suburbanos que não liam, a amigos de longa
data dos condenados da terra que prontamente o chamavam de racista. Nós
sentimos a ascensão desta raiva primária, que transformava o combate social em
espírito de intolerância. O ódio é uma bebedeira; as ameaças de morte, habituais;
os mails de lixo, numerosos. Acontecia-me perguntar a um dono de um quiosque, geralmente
árabe, que dizia não receber o jornal com uma tal expressão de raiva que não
escondia a mentira. Sem se dar por isso, a atmosfera mudava. Tinha chegado um momento,
sem dúvida a partir do incêndio criminoso de 2011, onde parei, sem deixar de
sentir vergonha, de abrir Charlie Hebdo no metro».
A partir daqui foi a contagem decrescente até ao atentado,
ao massacre. E Philippe Lançon explica bem o que sentiu por parte de alguma
esquerda culpabilizante e defensora de uma moral e de uma ética onde não cabe o
riso e a liberdade de expressão, já que, pela direita se sabia o que daí vinha.
Portanto a barbárie, no caso, chegou viu e venceu e passados seis anos os
factos estão aí para o provar. Quando se começa a culpar a vítima (como Lançon,
jornalista, despreza esta palavra!) porque provocou o agressor tudo de sujo
será possível. E foi o que aconteceu no caso de Charlie Hebdo.
António Luís Catarino
Coimbra, 20 de julho de 2020
A ironia e o sarcasmo sempre presente em Charlie Hebdo. E a liberdade de expressão também. |