«Eternidade», de Ferreira de Castro
Um tipo, quando tem 13 anos salta sobre um banco em direcção à
estante dos pais e procura debalde um livro que lhe acalme as hormonas. Lá fica
com Eça, Camilo, Brandão, Ferreira de Castro, Alves Redol, Soeiro, Gomes
Ferreira. O Jorge Amado e Erico Veríssimo, também. Lê-os e esquece-os na
voragem dos vinte e trinta na procura do novo que tudo ponha em causa e muito
para «épater le bourgeois» que os há em cada família e não só. Por vezes,
esquece-os e não volta a tocar neles. Agora, a memória reflexiva dos sessenta
faz com eu regresse às leituras.
Pessoas há, e eu sou uma delas, que só dão conta das pérolas
que lhes vêm às mãos muito depois. «Eternidade», de Ferreira de
Castro é um exemplo desses. Nunca o tinha lido, embora existisse em casa dos meus pais, e adquiri-o num impulso porque
o comecei a ler ainda na livraria. Logo que tirei a máscara e me desinfectei
nunca mais o larguei. Por que razão não consigo ler de máscara ainda será um
mistério que me assiste. Mas, num dia! Li-o num simples dia, coisa que não
fazia há muito.
As personagens são românticas, como aliás é aí dito a certa
altura. Ferreira de Castro não o é, e a estória muito menos. Não é
realista ou neorrealista. Não cabe em rótulos. Um único que lhe cabe é que é
extraordinário. Ou seja, muito para além do ordinário. Não é moralista ou
decadentista. É cheio de vida. Contraditório e selvagem. Juvenal,
engenheiro silvicultor é um homem apaixonado por uma mulher, Helena, que lhe
morreu em Lisboa. Nunca percebemos se o seu amor é mesmo por ela se pela morte
que a acompanha. Na viagem à sua cidade natal, o Funchal, vê-se enredado
em desejos que passam por Renée, pelas putas de rua junto à Sé, por Elisabeth,
casada com o industrial romeno e que se divorcia para o acompanhar para a
deportação em Cabo Verde, na Ilha do Sal, castigo esse que abre a hipótese de um
campo de concentração que, intuímos, se inaugurará mais tarde.
Estamos em 1933, ano da «legitimação» constitucional
do Estado Novo e todas as oposições são possíveis ainda que de um modo
gestacional. A ressaca da crise mundial de 1929 ainda se sente na queda das
exportações e os preços e os salários sofrem baixas terríveis. A personagem
principal vê-se envolto na burguesia salazarista madeirense de onde a família é
oriunda e o contraste brutal de uma população que ainda permanece com os seus
traços feudais, quer na situação de operários da indústria exportadora conserveira
e vinícola que se apegam ainda às associações mutualistas (embora se manifestem
já de bandeira vermelha), quer às bordadeiras (40 a 60 mil segundo o autor), ou
aos camponeses das levadas que são explorados até à morte, mais que não seja
pela tuberculose, loucura ou pela aguardente.
Juvenal muda de campo e adere aos mais pobres. Não
lhe interessa viver assim. Adere através de uma manifestação de fome, violenta,
em que se incendeiam algumas sedes de exportações de bordados. Pressente-se já
a presença de comunistas organizados, doze anos depois da fundação do PCP. «Ser
humano, só humano perante a dor infinita, era sentir-se complexo como um deus e
insignificante como um grão de pó. Era ser tudo e ser nada – e sofrer, no seu
egoísmo, a sensação de ser nada, nada, nada! Ninguém articulara ainda, entre
tantos que sofreram o mesmo drama ao longo de milénios, a palavra consoladora.
Ninguém! Ou se tinha uma utopia e se marchava agarrado a um velho bordão
metafísico, ou a razão cambaleava por caminhos sem saída. E se a ansiedade duma
certeza era maior, por chaga recente avivada, só se encontrava o silêncio
universal e, entre a tribos, a submissão de quem se fatigara de tanto perscrutar».
E Juvenal, pela caneta de Ferreira de Castro, coloca as culpas ao
chicote salazarista e ao medo que a Igreja impõe às populações.
A eternidade aqui conta-se por milénios. Ferreira
de Castro coloca Juvenal numa redoma de dúvida perante a capacidade
do Homem em regenerar-se, em criar uma sociedade igualitária. Pelo menos em
vida dele. E torna-o triste, cabisbaixo, quase desesperado, só não sendo
indiferente para com a sorte dos subalternos. Aí ele age e paga com o
ferimento, a prisão e a deportação onde se junta Elisabeth, vinda de
Inglaterra, já divorciada e grávida de um filho que, segundo ele, talvez
continue a luta. «A compreensão…A compreensão e os homens libertos de
injustiças que sobre eles pesavam, das injustiças que ajudavam a manter viva e
aderida a ganga inicial. Havia de existir um ponto convergente. Havia de
existir ou havia de produzir-se, com o rodar dos tempos, a possibilidade duma
conciliação entre todas as disparidades; uma conciliação mesmo nos pegos mais
profundos, onde as incongruências da natureza se ocultavam melhor. Porque o
homem não era só aquilo, não era só como ele o via nos seus momentos de
desespero. O homem era, pela força do espírito, uma promoção sem limites, mesmo
quando gastava milénios a ascender a um novo grau».
Este homem, Ferreira de Castro, vislumbrou esse grau
e é um grande escritor. Que tivesse recusado ser proposto para Nobel, depois de
ser reconhecido mundialmente e ser traduzido em 10 línguas, percebe-se agora
porquê. Razão pela qual, se não tivermos cuidado, e geralmente nunca temos, ele
vai ser esquecido dos mais jovens, tal como Brandão e Aquilino. Esperemos e
lutemos por um novo grau, então.
António Luís Catarino
Coimbra, 21 de Julho de 2020.