O policial merece-o. No Dia do Livro aí vai «A Fera tem de Morrer», de Nicholas Blake, representando todo o manancial de livros policiais lidos até aqui desde a minha juventude. Ele há de tudo. Autores fascistas como S.S. Van Dine (esta coisa do SS, não engana!) que cita Oswald Spengler e o esplendor e decadência da civilização ocidental, mais Phillips Oppenheim que vai pelo mesmo caminho com a superioridade das elites face às «classes perigosas» propensas aos crimes hediondos, os arrogantes detetives vitorianos ingleses que, apesar das guerras, teimam em viver de acordo com o código de conduta de gentlemen como Jeffrey Farjeon e Ellery Queen, de Rex Stout a Edgar Wallace, as seguidoras falhadas de Agatha Christie como Margery Allingham e os extraordinários Dashiell Hammett e Raymond Chandler que, só por si, valem toda a parafernália de páginas e páginas até os descobrirmos e os seguirmos nos filmes homónimos dos anos 50. Quem lê estes policiais fica vacinado, nunca mais os deixa.
Um facto indiscutível é que nos anos pós-29 se vivia muito melhor do que hoje. Bebia-se sem parar, fumava-se em todo o lado e com a avidez de uma chaminé de Liverpool, amava-se loucamente, praticava-se o adultério sempre por uma boa razão escondida em que os culpados eram quase sempre os cônjuges demissionários, passeava-se em enormes jardins públicos, o campo ainda salvaguardava os bons selvagens que o habitavam e os homens e as mulheres temiam a Deus enquanto faziam precisamente o contrário do que Ele dizia. As casas eram quase sempre cottages, enormes com enormes pés direitos e amplas escadarias em caracol, as mesas de carvalho, a comida era uma quase religião que desconhecia ainda o estúpido conceito gourmet e os automóveis de uma beleza clássica, isto se a civilização clássica tivesse parido carros autogovernados. O futurismo deu ao automóvel uma elevação que, de todo, hoje não merece e a arte, já depois de o dadaísmo e o surrealismo lhe fazerem a folha, atinge, no crime, uma espécie de leitmotiv, de presença fúnebre. Todo um mundo a descobrir nos policiais. Havia sempre dinheiro para tudo e os gastos eram enormes. Poder-se-ia permanecer num hotel dos Alpes suíços uma eternidade, despreocupadamente. O dinheiro vinha sempre de honorários ou heranças sumptuosos. Os próprios crimes eram de uma elegância enorme. Sim, o sangue escorria aos borbotões, mas nada que pudesse travar o desenrolar magnânimo da inteligência do investigador que, quase sempre, era acompanhada pelo arrependimento do assassino ou da assassina, embora esta última ou tenha uma forte razão para o cometer ou era portadora de um cérebro tortuoso e frio de homicida. Freud explicava tudo e não é raro encontrarmos o doutor citado nas páginas amareladas da Vampiro.
Neste «A Fera tem de Morrer», Nicholas Blake demonstra como uma vingança pode ser montada partindo do princípio que, se se propagandear o fim e o objetivo dessa mesma vingança, o seu executante estará fora das suspeitas. Um suspeito que diz que vai cometer um crime chegará a ser um suspeito? É nessa grande questão dos nossos tempos que a coisa flui.
Escolham pois, hoje, a fera que há de morrer. Terão muito por onde escolher.
António Luís Catarino
Coimbra, 23 de abril de 2020