Itinerários de um estudante no distrito XVI de Paris, IL-IS, 1952 |
Não conheces ninguém, e não falo dos parvos de espírito, que
não veja a rua não só como um espaço público, mas igualmente como um espaço
comum. Aliás, gostas mais deste último adjectivo: comum. Falta na constituição
a coisa comum. Porque o público pressupõe o privado. Para isso tens a tua casa.
Não entendes a política sem a rua e sem as suas travessas por onde podes, isso
mesmo, tergiversar. Fugir ao bom senso, esse conceito tão vago. Na rua não há
bom senso. Não é preciso ires à ágora grega para nos lembrar a sua importância
para a construção de uma democracia que, nesses remotos tempos, era directa. A
rua é onde também se lastima o que não foi conseguido, onde se dá aso à
revolta, onde se perspectiva a vida futura. A rua é contagiante por causa do
inesperado. É onde se rouba e se é roubado. É onde se compram e se vendem as
ilusões que ainda não desfizemos. Na rua também se chora e ri, se observa e é observado.
Onde gostas que te observem, ou onde te escondes se não queres ser visto. Mas,
ainda assim, na rua. Um café, uma cerveja, um cigarro na rua não te sabe ao
mesmo que em casa. Sabe-lo bem. Também te feres e feres outros. Dás e recusas a
dádiva ou o euro que te pedem. Na rua tu gritas e deixas que te abafem o som da
tua ira ou do teu sarcasmo. Mas na rua não desistes com os outros que estão
contigo. Se os outros fenecem, tu levantas-te. Se não estás seguro de ti encostas-te
às paredes da rua e segues em frente. Na rua também podes ler e questionar. Na
rua páras a ouvir uma música, entras numa loja sem comprar nada, agradeces ou
calas-te. Na rua ameaças e és ameaçado. Na rua também vês passar militares e
militarizados. Na rua inalas odores e perfumes. Vês todos os tipos de fardas
para manter o status e uma segurança sempre aparente da rua. Nunca te esqueças
que na rua viste a liberdade e transgrediste. Tornaste-te mais forte na rua.
Conheceste outros. Viste o amor e o ódio. Manifestaste-te e propuseste utopias
sem fim. Foi na rua que te desfizeram as utopias, foi lá que leste livros e que
soubeste que as coisas já não eram o que pensavas ser. Na rua viste cartazes e
alguns te disseram algo que te informaram como antigos aedos. Foi na rua que
viveste aquela tarde, aquela noite em que viste uns olhos lindos que se
cruzaram contigo. Na rua, naquela precisa rua, tentas lembrar-te do que aconteceu
e que vais, mais tarde, saber. Na rua viste pedras e por algumas vezes
levantaste-as para confirmar se havia ou não a praia que te prometeram. Foi na
rua que encontraste a deriva e o inesperado que te arremete, que desenhaste
quadrículas e que construíste a tua situação irreversível. Porque, na rua, tudo
o que se passou é areia entre os dedos. Mas que fica como uma marca que nem o
vento ou chuva conseguem desvanecer.
É na rua que vais resistir à rua que te querem tirar.
António Luís Catarino
1 de maio de 2020