Reconheço que foi uma tarefa difícil, esta, a que me propus.
Tentar conhecer S. Paulo, (antes de ler o livro de Teixeira de Pascoaes)
minimamente, como eu fiz, pondo de lado ideias feitas e apriorísticas é quase
impossível mas, no final da empresa, consegui deixar para trás de mim um certo
afastamento e mesmo incómodo que mantinha relativamente a esta personagem central
na hagiografia católica. Li, claro, a sua epistolografia e
detive-me nalguns trechos mais ou menos controversos que, para espanto meu,
tinham quase as mesmas interpretações somente em duas fontes que consultei: a Bíblia
dos Capuchinhos e a de Frederico Lourenço. Mesmo as que eram
identificadas por pseudopaulinas, como as Cartas de Tito e
as de Timóteo, o seu discípulo preferido. As duas Bíblias eram
concordantes na generalidade, igualmente, na maioria dos verbos e expressões
traduzidos principalmente do grego. Menos mal, porque pensaria que as coisas
fossem mais complicadas neste aspeto.
![Religionline: Prémio Pessoa para Frederico Lourenço – e para a ...](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEibSpt3kaEcyG5_ybusYr_AB6qqplrShrQNqfdaRwKM983zYkmBpKeC_22mx01jFrlgM4wxt264fo399o15H4NfXqPOUP5qwFQjBKTSskc_5XUM67JhjIKH2IFApDVTvoSrdLEN/s320/image.jpeg)
Paulo era, sem dúvida alguma, um espírito atormentado,
febril, nervoso, autoritário, fisicamente diminuído, doente e claramente
místico. Judeu nascido em Tarso ao que se julga nos anos 20, ainda com Cristo
vivo, numa grande cidade cosmopolita e cruzamento de todas as mercadorias e
ideias do mundo de então, foi um aluno de Gamaliel, fariseu e zeloso da Lei do
Antigo Testamento e da Torá. Saulo de Tarso, como se chamava então, perseguiu
e matou cristãos entre os quais Estevão dado como o primeiro mártir cristão. Na
estrada para Damasco num episódio conhecido entre físico e místico adivinhou a
presença de Jesus. A partir daí tornou-se evangelizador e tão zeloso como o era
antes da conversão, mas agora divulgando a palavra de Cristo, numa síntese da velha
com uma nova aliança. Criou a Igreja cristã universal contra o judaísmo integralista,
contra a Roma dos Césares e a hierarquia um tanto hostil de Pedro e Tiago, por
razões que Teixeira de Pascoaes classifica, aos olhos do poeta, como pueris e
mesquinhas (ser circuncidado ou não, comer com gentios, etc.). Mas o que me
leva a tentar perceber S. Paulo é o processo, não o produto da sua
evangelização. É a ideia feita ação. Aquilo a que hoje se
chama a política (o conceito de pólis que não seria de todo
desconhecido de um estudante da Lei em Tarso, cujos contactos coma cultura
helenística eram óbvios).
![Leyaonline - São Paulo - WRIGHT, N.T.](https://www.leyaonline.com/fotos/produtos/500_9789722066747_sao_paulo.jpg)
Já irei a Teixeira de Pascoaes. Antes, li a biografia de
S. Paulo, publicada pela D. Quixote e cujo autor, Nicholas Thomas Wright,
Professor anglicano em Oxford e Cambridge, entre outras instituições académicas,
me deu garantias sólidas de conhecedor profundo do apóstolo e um estudioso,
igualmente, da história do cristianismo primitivo. Mas Frederico Lourenço
foi, também, uma referência importante na tradução dos Atos.
Ora, é aqui que entra Teixeira de Pascoaes um poeta
luso da decadência, da saudade e do misticismo sebastianista. Tem, tal como Junqueiro
e Raúl Brandão, laivos surrealistas e antirracionalistas
nas suas obras, razão pela qual me aproximaram sempre como autores excecionais.
É amigo de Unamuno com quem troca vasta correspondência. Como vê,
Teixeira de Pascoaes, S. Paulo? Não minto que o vê com uma vontade férrea em
edificar o «projeto» cristão e alargá-lo a todo o mundo, mas vendo uma
oportunidade no seu livro, editado em 1934 no Porto, de o «cruzar» com a ideia
decadentista e passadista muito portuguesa e que compartilha com os autores
citados anteriormente.
No entanto, vejo-o igualmente com Antero num retorno
ao cristianismo primitivo, com Eça do Suave Milagre e
principalmente com Camilo Castelo Branco a quem dedica a excecional
biografia «O Penitente». Juntamente, com S. Jerónimo, compõe-se
esta trilogia de anjos rebeldes e desesperados. Embora tenha biografado Santo
Agostinho, esta não pertencerá a esta trilogia, segundo António Cândido
Franco que teve o condão de publicar as suas obras na Assírio e Alvim.
Reparem: entre a 1ª edição de 1934, só 25 anos depois é publicada a 2ª edição e
a 3ª edição é de 1984, noutros 25 anos! S. Paulo Foi traduzido para
espanhol, holandês, alemão, francês (na Gallimard), inglês e húngaro. Cá, como
em Espanha, o livro foi censurado e criticado violentamente, pelo que se
percebe os longos interlúdios editoriais. Além disso, Pascoaes não é
assimilável pela Brasileira do Chiado. É um marginal que se acantona em
Amarante e que recusa a advocacia e o sistema de ensino, como o conimbricense,
que compara a um presídio! Raúl Brandão safa-se do epíteto porque os neorrealistas
o absorvem depois do tão estranho, quanto belo, «Húmus».
Para Pascoaes não há
perdão. É o anarquista, o cristão, o idealista que afirma no seu «São Paulo»: «(…)
como descobrimos na Ceia, o sentido da religião cristã, o culto do
espírito que redime a criação material. O Banquete atingiu aspetos
desvairados e teve um significado superior. Era a carne, louca de gozo, a
suicidar-se, a provocar a ressurreição espiritual. A embriaguez dionisíaca deu
o misticismo cristão. Da uva báquica saiu o vinho eucarístico».
É evidente, também,
o seu anti-cientismo «Enquanto o homem sofrer e amar, perdido na noite
do mistério, haverá religião, porque a ciência não lhe basta»; a
santificação pela loucura elegendo o seu panteão: «S. Paulo foi a alma
ansiosa que jamais parou, na subida, aquele sim do Amor gritado contra
todos os nãos do egoísmo materialista. Foi a alma-mater de
todas as almas, para as quais o Universo sem Deus é um zero tão grande como
inútil. Dela descendem os santos e poetas da Loucura: Santo Agostinho, S.
Francisco de Assis, Santa Teresa de Ávila, que divinizou o amor humano e Soror
Mariana que humanizou o amor divino»;
Pascoaes anti epicurista que afasta
Lucrécio que se suicida no Tibre «como um cão» lembrando-se talvez do
suicídio do seu irmão, estudante em Coimbra, em 1903: «Paulo o poeta supremo da
loucura e da fome; Lucrécio, o poeta supremo da saciedade e da razão» e mais à
frente: «Paulo vive, rodeado de anjos e fantasmas. Lucrécio vive sozinho, no
deserto»; no capítulo XXIII, que poderemos considerar o epílogo de um
livro de uma beleza extraordinária e elegíaca para com Paulo podemos ler
projetando os futuros:
«A conversão da alma pagã na cristã é uma passagem
misteriosa, como a do ser animal para o consciente. A alma pagã, caída
no ceticismo e ateísmo, deveria evoluir dentro de uma compreensão materialista
da existência. Rejeitado o estoicismo rígido, hostil, pertenceria ao epicurismo
romano orientar a Humanidade. Teríamos Lucrécio em vez de Paulo. Mas
não: mortos os deuses clássicos, surge-nos um deus romântico. [… as influências
de Cristo] Recebeu-as S. Paulo,
que as transmitiu aos outros, em palavras maternais, infinitamente insinuantes.
Vibraram num meio social esterilizado pela filosofia racionalista, percursora
dos gramofones e dos gases venenosos. As forças poéticas, sentimentais,
dominaram as ideias, que amesquinham a existência, restringindo-a a um simples
jogo inútil e mecânico».
E mais uma
vez a superação necessária da Razão em Pascoaes: «O mundo foi da Poesia,
nos primeiros séculos da nossa era. Repetir-se-á o milagre? Voltará o deus dos
poetas contra os sábios que só acreditam na matéria? E com ela fabricam
explosivos, gases asfixiantes, máquinas pavorosas? Nesta orgia industrial
moderna, paródia em ferro e vapor, orgia pagã, o homem está morto ou isolado do
seu espírito. Existe, mas não vive. Existe a duzentos quilómetros à hora, mas
com a vida parada, dentro dele. Vida inerte numa existência delirante. Seduzido
pelo ruído e movimento, as duas faces desta civilização americana ou
neo-neroniana [de Nero, a quem Pascoaes acusa da morte de Paulo, talvez
em Roma], integrou-se num
sistema mecânico industrial, e é simplesmente uma engrenagem (…) O homem
desviado do seu destino, que é tornar-se, perante o Criador, consciência
universal, mente à sua própria natureza e perde a razão de ser».
Teixeira
de Pascoaes, premonitório e contemporâneo, conclui: «Esta civilização americana depende
de materiais esgotáveis ou em quantidade limitada. A fábrica, esse templo
moderno, há de ser destruída, como o templo de Artemisa, em Éfeso, e o de Vénus,
em Pafos. Templo quer dizer túmulo, casa dos mortos, que os mortos foram os
primeiros deuses. Foram eles que dirigiram, para além do mundo, a atenção dos
vivos. Destruída a fábrica pagã, teremos a Igreja de Cristo, a confraria dos
irmãos, o convívio universal e amoroso. Confiemos no Deus de Paulo».
A
ingenuidade febril de um e o zelo pelo amor e fraternidade de outro
confundem-se num território ideal de ninguém e de todos nós. A vida ainda há de
pertencer, um dia, aos Poetas.
António Luís Catarino
António Luís Catarino