quinta-feira, abril 09, 2020

«São Paulo», de Teixeira de Pascoaes. A Lenda corrige a História


São Paulo - Livro - WOOK
Reconheço que foi uma tarefa difícil, esta, a que me propus. Tentar conhecer S. Paulo, (antes de ler o livro de Teixeira de Pascoaes) minimamente, como eu fiz, pondo de lado ideias feitas e apriorísticas é quase impossível mas, no final da empresa, consegui deixar para trás de mim um certo afastamento e mesmo incómodo que mantinha relativamente a esta personagem central na hagiografia católica. Li, claro, a sua epistolografia e detive-me nalguns trechos mais ou menos controversos que, para espanto meu, tinham quase as mesmas interpretações somente em duas fontes que consultei: a Bíblia dos Capuchinhos e a de Frederico Lourenço. Mesmo as que eram identificadas por pseudopaulinas, como as Cartas de Tito e as de Timóteo, o seu discípulo preferido. As duas Bíblias eram concordantes na generalidade, igualmente, na maioria dos verbos e expressões traduzidos principalmente do grego. Menos mal, porque pensaria que as coisas fossem mais complicadas neste aspeto.

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Paulo era, sem dúvida alguma, um espírito atormentado, febril, nervoso, autoritário, fisicamente diminuído, doente e claramente místico. Judeu nascido em Tarso ao que se julga nos anos 20, ainda com Cristo vivo, numa grande cidade cosmopolita e cruzamento de todas as mercadorias e ideias do mundo de então, foi um aluno de Gamaliel, fariseu e zeloso da Lei do Antigo Testamento e da Torá. Saulo de Tarso, como se chamava então, perseguiu e matou cristãos entre os quais Estevão dado como o primeiro mártir cristão. Na estrada para Damasco num episódio conhecido entre físico e místico adivinhou a presença de Jesus. A partir daí tornou-se evangelizador e tão zeloso como o era antes da conversão, mas agora divulgando a palavra de Cristo, numa síntese da velha com uma nova aliança. Criou a Igreja cristã universal contra o judaísmo integralista, contra a Roma dos Césares e a hierarquia um tanto hostil de Pedro e Tiago, por razões que Teixeira de Pascoaes classifica, aos olhos do poeta, como pueris e mesquinhas (ser circuncidado ou não, comer com gentios, etc.). Mas o que me leva a tentar perceber S. Paulo é o processo, não o produto da sua evangelização. É a ideia feita ação. Aquilo a que hoje se chama a política (o conceito de pólis que não seria de todo desconhecido de um estudante da Lei em Tarso, cujos contactos coma cultura helenística eram óbvios).
Leyaonline - São Paulo - WRIGHT, N.T.
Já irei a Teixeira de Pascoaes. Antes, li a biografia de S. Paulo, publicada pela D. Quixote e cujo autor, Nicholas Thomas Wright, Professor anglicano em Oxford e Cambridge, entre outras instituições académicas, me deu garantias sólidas de conhecedor profundo do apóstolo e um estudioso, igualmente, da história do cristianismo primitivo. Mas Frederico Lourenço foi, também, uma referência importante na tradução dos Atos.

Ora, é aqui que entra Teixeira de Pascoaes um poeta luso da decadência, da saudade e do misticismo sebastianista. Tem, tal como Junqueiro e Raúl Brandão, laivos surrealistas e antirracionalistas nas suas obras, razão pela qual me aproximaram sempre como autores excecionais. É amigo de Unamuno com quem troca vasta correspondência. Como vê, Teixeira de Pascoaes, S. Paulo? Não minto que o vê com uma vontade férrea em edificar o «projeto» cristão e alargá-lo a todo o mundo, mas vendo uma oportunidade no seu livro, editado em 1934 no Porto, de o «cruzar» com a ideia decadentista e passadista muito portuguesa e que compartilha com os autores citados anteriormente.

No entanto, vejo-o igualmente com Antero num retorno ao cristianismo primitivo, com Eça do Suave Milagre e principalmente com Camilo Castelo Branco a quem dedica a excecional biografia «O Penitente». Juntamente, com S. Jerónimo, compõe-se esta trilogia de anjos rebeldes e desesperados. Embora tenha biografado Santo Agostinho, esta não pertencerá a esta trilogia, segundo António Cândido Franco que teve o condão de publicar as suas obras na Assírio e Alvim. Reparem: entre a 1ª edição de 1934, só 25 anos depois é publicada a 2ª edição e a 3ª edição é de 1984, noutros 25 anos! S. Paulo Foi traduzido para espanhol, holandês, alemão, francês (na Gallimard), inglês e húngaro. Cá, como em Espanha, o livro foi censurado e criticado violentamente, pelo que se percebe os longos interlúdios editoriais. Além disso, Pascoaes não é assimilável pela Brasileira do Chiado. É um marginal que se acantona em Amarante e que recusa a advocacia e o sistema de ensino, como o conimbricense, que compara a um presídio! Raúl Brandão safa-se do epíteto porque os neorrealistas o absorvem depois do tão estranho, quanto belo, «Húmus». 

Para Pascoaes não há perdão. É o anarquista, o cristão, o idealista que afirma no seu «São Paulo»: «(…) como descobrimos na Ceia, o sentido da religião cristã, o culto do espírito que redime a criação material. O Banquete atingiu aspetos desvairados e teve um significado superior. Era a carne, louca de gozo, a suicidar-se, a provocar a ressurreição espiritual. A embriaguez dionisíaca deu o misticismo cristão. Da uva báquica saiu o vinho eucarístico». 

É evidente, também, o seu anti-cientismo «Enquanto o homem sofrer e amar, perdido na noite do mistério, haverá religião, porque a ciência não lhe basta»; a santificação pela loucura elegendo o seu panteão: «S. Paulo foi a alma ansiosa que jamais parou, na subida, aquele sim do Amor gritado contra todos os nãos do egoísmo materialista. Foi a alma-mater de todas as almas, para as quais o Universo sem Deus é um zero tão grande como inútil. Dela descendem os santos e poetas da Loucura: Santo Agostinho, S. Francisco de Assis, Santa Teresa de Ávila, que divinizou o amor humano e Soror Mariana que humanizou o amor divino»; 

Pascoaes anti epicurista que afasta Lucrécio que se suicida no Tibre «como um cão» lembrando-se talvez do suicídio do seu irmão, estudante em Coimbra, em 1903: «Paulo o poeta supremo da loucura e da fome; Lucrécio, o poeta supremo da saciedade e da razão» e mais à frente: «Paulo vive, rodeado de anjos e fantasmas. Lucrécio vive sozinho, no deserto»; no capítulo XXIII, que poderemos considerar o epílogo de um livro de uma beleza extraordinária e elegíaca para com Paulo podemos ler projetando os futuros:

«A conversão da alma pagã na cristã é uma passagem misteriosa, como a do ser animal para o consciente. A alma pagã, caída no ceticismo e ateísmo, deveria evoluir dentro de uma compreensão materialista da existência. Rejeitado o estoicismo rígido, hostil, pertenceria ao epicurismo romano orientar a Humanidade. Teríamos Lucrécio em vez de Paulo. Mas não: mortos os deuses clássicos, surge-nos um deus romântico. [… as influências de Cristo] Recebeu-as S. Paulo, que as transmitiu aos outros, em palavras maternais, infinitamente insinuantes. Vibraram num meio social esterilizado pela filosofia racionalista, percursora dos gramofones e dos gases venenosos. As forças poéticas, sentimentais, dominaram as ideias, que amesquinham a existência, restringindo-a a um simples jogo inútil e mecânico».

E mais uma vez a superação necessária da Razão em Pascoaes: «O mundo foi da Poesia, nos primeiros séculos da nossa era. Repetir-se-á o milagre? Voltará o deus dos poetas contra os sábios que só acreditam na matéria? E com ela fabricam explosivos, gases asfixiantes, máquinas pavorosas? Nesta orgia industrial moderna, paródia em ferro e vapor, orgia pagã, o homem está morto ou isolado do seu espírito. Existe, mas não vive. Existe a duzentos quilómetros à hora, mas com a vida parada, dentro dele. Vida inerte numa existência delirante. Seduzido pelo ruído e movimento, as duas faces desta civilização americana ou neo-neroniana [de Nero, a quem Pascoaes acusa da morte de Paulo, talvez em Roma], integrou-se num sistema mecânico industrial, e é simplesmente uma engrenagem (…) O homem desviado do seu destino, que é tornar-se, perante o Criador, consciência universal, mente à sua própria natureza e perde a razão de ser».

Teixeira de Pascoaes, premonitório e contemporâneo, conclui: «Esta civilização americana depende de materiais esgotáveis ou em quantidade limitada. A fábrica, esse templo moderno, há de ser destruída, como o templo de Artemisa, em Éfeso, e o de Vénus, em Pafos. Templo quer dizer túmulo, casa dos mortos, que os mortos foram os primeiros deuses. Foram eles que dirigiram, para além do mundo, a atenção dos vivos. Destruída a fábrica pagã, teremos a Igreja de Cristo, a confraria dos irmãos, o convívio universal e amoroso. Confiemos no Deus de Paulo».

A ingenuidade febril de um e o zelo pelo amor e fraternidade de outro confundem-se num território ideal de ninguém e de todos nós. A vida ainda há de pertencer, um dia, aos Poetas.

António Luís Catarino

Coimbra, 9 de abril de 2020