Foto: Relógio D'Água |
A questão é esta: como é que um livro de 40 páginas nos pode, através de um poder de síntese notável e que só os melhores dispõem, agarrar de tal modo? George Steiner tem esse dom. Quando li o último livro de Rui Pereira «Pensar em tempos de não-pensamento», cuja ficha de leitura se encontra neste blogue em http://derivadaspalavras.blogspot.com/2019/10/foto-rui-gracio-editor-rui-pereira-tem.html tive a feliz ideia, na esteira das questões levantadas pelo Rui, ler, logo de seguida, este «Dez razões (possíveis) para a tristeza do Pensamento». Parece-me, pois, que, na prática objetiva do ato de pensar, existe um lado solar e um lado lunar. Isto porque o ato de pensar não conduz necessariamente à tristeza. No entanto, o estudo de Steiner é demasiado claro para o pormos de lado.
Steiner inicia o livro com uma citação de Shelling, em «Da essência da liberdade humana», quando escreve:
Tal é a tristeza inseparável de toda a vida
finita, uma tristeza, porém, que nunca se torna realidade e serve tão-só para
dar alegria eterna de a superar. Dela vem o véu de pesar que se estende sobre
toda a natureza, a melancolia profunda e indestrutível de toda a vida
Apenas na personalidade há vida; e toda a
personalidade assenta num fundamento sombrio, que, não obstante, tem também de
servir de fundamento ao conhecimento.
E Steiner regressa a Shelling para nos avisar:
(...) e à asserção de
que uma tristeza necessária, um véu de melancolia, se associa ao próprio processo
de pensamento à perceção cognitiva. Poderemos nós tentar esclarecer algumas
razões para tal? Teremos nós o direito de perguntar por que não deverá o
pensamento humano ser alegre?
Após esta introdução/aviso ao leitor, Steiner evolui
paulatinamente e clareza para os dez
pontos sobre a possível tristeza no pensamento. Fastidioso era se eu as fosse
enumerar todas, mas partilho convosco algumas afirmações de George Steiner:
·
A infinitude
do pensamento é também uma «infinitude
incompleta». Está sujeita a uma contradição interna para o qual não poderá
haver qualquer solução. E continua, afirmando que essa contradição interna (aporia),
esta inevitável ambiguidade, é inerente em todos os atos do pensamento, em
todas as conceptualizações e intuições. Experimentem, provoca Steiner, escutar
atentamente a torrente do pensamento e, no seu centro inviolável, irão ouvir
dúvida e frustração. Não será necessário «pensar» muito para ver que sim, que é
verdade. Não me atrevo aqui a dizer que eu sou um exemplo vivo..
·
A
concentração completa não existe. Ela produz exaustão temporária, ou
permanente, como acontece a certos jogadores de xadrez ou matemáticos do ramo
da lógica. Eu acrescentaria outros, mas como se entende que esta concentração
de que Steiner nos apresenta é provocada, torna-se evidente que o pensamento
corrente, ou mesmo o de quando dormimos, é uma salvaguarda para a exaustão.
·
A originalidade
no pensamento existe mesmo? Ou estamos somente no campo da retórica?
Proponho: vamos pensar a utopia? Há quantos
milénios o fazemos mudando apenas alguns pressupostos? Acreditem que só de
ouvir falar em utopia já me sinto exausto, tal o número de variantes possíveis
de construção.
E as palavras, o nosso pensamento, as ideias, as comparações
tentadoras, as metáforas e analogias fluem neste livro incomum.
Steiner será um mestre em desfazer mitos de que somos tão carentes.
Mas também, segundo ele, novos mitos levantar-se-ão, como quem repete de uma
forma interminável, «novos» pensamentos.
Conclusão?
Entretanto, não é a discussão teológica ou
filosófica que conduz o pensamento aos limites dos seus indispensáveis e sempre
repetidos impasses. É, creio eu, a música, esse meio tantalizante de intuição
revelada para lá das palavras, para lá do bem e do mal, em que o papel do
pensamento, tal como o conseguimos captar, permanece profundamente fugidio. Os pensamentos
demasiado profundos, não tanto pelas lágrimas como pelo próprio pensamento.
Pode muito bem que Sófocles tenha dito tudo
na ode coral sobre o homem em «Antígona». O domínio do pensamento, da
inquitante velocidade do pensamento exalta o homem acima de todos os seres
vivos. No entanto, ele torna-o um estranho em relação a si mesmo e à enormidade
do mundo.
Falta,
propositadamente aqui, a exposição de Steiner de como o «pensamento» pode
influenciar a «originalidade» e a chamada criatividade na arte, ou de como se os nossos
neurónios não estivessem ligados química e eletricamente. Teremos nós o estudo da técnica,
é certo, mas há gestos e «saltos» que o próprio criador desconhece.
António Luís
Catarino
Coimbra 9 de
novembro de 2019