Charlotte Delbo. Resistente das Juventudes Comunistas, foi das poucas mulheres não-judias presa em Auschwitz Foto: Club Editor |
Livro estranho este. Pode um livro sobre Auschwitz, ser mais um livro sobre Auschwitz? Daqueles que inundam as livrarias para oferta do Natal que se aproxima e serão best-sellers garantidos? «Auschwitz e depois» de Charlotte Delbo é um livro diferente sobre o horror do programa nazi. Mas não só. Vêm lá todas as descrições consistentes e inequívocas dos campos de concentração, entre eles Auschwitz, somando o de Birkenau, campo da morte de onde ela pensava não poder sair e de Ravensbrück, campo só para mulheres, onde a autora também esteve; aliás, o seu último, antes da sobrevivência para a liberdade. Charlotte conta-nos o que já todos pensamos saber. O «Schnell! Schnell!» repetido e gritado constantemente aos seus ouvidos, sentir e tentar ignorar os espancamentos das kapos judias, as horas intermináveis na neve, para a «chamada» dos e das SS, as trocas de rações miseráveis, o esgotamento físico e psicológico, por fim a morte, nalguns casos, salvadora. As descrições são-nos transmitidas com um profundo amor pelas companheiras, as que pereceram e as que se salvaram com ela. A sua escrita é de uma doçura paradoxal. Nada acomete a uma eventual e legítima raiva. Compreenderíamos. Vê uma flor amarela e isso vale como um raio de enorme felicidade. Na trilogia da sua obra «Nenhuma de nós há-de voltar» (Livro I), nos seus primeiros apontamentos, não aflora nenhuma fúria. Simplesmente não vê. Olha para o lado quando vê um monte de cadáveres nus com a tatuagem de um número que ela também tem no braço. Não olha para a fila de mulheres «inúteis», escolhidas pelos SS, que esperam a sua vez no laboratório, antes do block 25, o dos gaseamentos. Ajuda como pode as vivas, sente-se culpada pelas mortes das mais frágeis que ela. A sua irmã morre no campo, ao seu lado e ela pergunta-se o que dirás aos pais, sendo que Charlotte não a impediu de morrer. Não a protegeu como devia. A culpa advem-lhe, arrasadora, talvez pior do que as torturas praticadas nos campos.
O Livro II, «Um
conhecimento inútil» e o III «Medida
dos nossos dias» são espantosos e talvez raros, neste tipo de literatura,
na sua descrição desiludida. É o «depois» aposto no título da trilogia. Após
ser libertada pela Cruz Vermelha e aceite como refugiada pelos suecos foi
repatriada para Paris onde, outrora, tinha sido presa pela Gestapo, como
resistente. Após três anos, não se habitua à vida «cá fora». Acorda às 3 da
manhã para a chamada e não mais adormece. Repete-se o schnell,
schnell, papéis, papéis, contagens, burocracias infinitas para quem não tem
já forças. A família que a afasta por estar «desequilibrada». A luta pela
herança do pai e o ataque jurídico da madastra. Cansa-a como nunca. Cá fora é
tudo schnell, schnell...é internada,
casa-se, divorcia-se, tem uma filha, quer estudar, tem de fazer a estúpida
contabilidade do pequeno hotel herdado.
Consegue, todavia, estudar e ainda juntar-se com as antigas companheiras de Auschwitz...nos
funerais de alguma delas. Todas riem e contam histórias do campo.
Nascida em
1913, sai de uma insuportável França
rendida aos fuzilamentos dos colaboracionistas e desconfianças para com alguns
resistentes. Ajuda ainda um que consegue provar a sua inocência. Vai para a
Suíça. Consegue trabalho na ONU e, passados muitos anos, volta para Paris onde
foi assistente de Henri Lefevre. Morre em 1985. Nunca se habituou, creio, ao
quotidiano.
Deixo-vos um extrato de um dos seus últimos poemas:
(...)
«Regressar não é tudo
É regressar para nos voltarmos a pôr a viver
A viver todos os dias
A trabalhar e a ter dívidas
A poupar para pagar as dívidas
A vender sabão
Porque não sabemos fazer outra coisa
A voltar para o escritório
Porque não sabemos fazer outra coisa
Na vida de todos os dias a procurar onde
morar
Porque não se pode viver de outro modo
A estar a horas
Porque no trabalho é preciso estar a horas
De que vos queixáis?
A vida é a vida com que sonháveis lá?
(...)»
Creio que
todos nós entendemos a analogia de Charlotte Delbo neste poema. Mas só uma
leitura completa dará a verdadeira dimensão desta grande escritora, para muitos
desconhecida. Os seus livros foram escritos em 1961 mas só publicados em 1970-71, porque entendia que a sua escrita não refletia completamente o terror passado nos campos.
A edição é
da BCF Editores, apoiada pelo Centre National du Livre francês.
António Luís
Catarino
Coimbra, 10
de novembro de 2019