Foto Rui Grácio Editor
Rui Pereira tem um percurso singular na área do jornalismo,
principalmente no Expresso que abandonou, abraçando a investigação e docência universitária
na Filosofia. Tem trabalhos e ensaios traduzidos para espanhol, francês, alemão
e italiano. Pensador excecional, amigo do seu amigo, generoso e de grande
empatia pessoal, lembrar-me-ei sempre de uma conversa entre ele e o catalão Santiago Lòpez-Petit, acerca do
seu livro «Amar e pensar» editado há anos e, creio, nunca traduzido para
português. A conversa decorreu em 2010, pouco antes de uma conferência onde
iria apresentar «O estado-guerra» deste último e foi com um entusiasmo muito
grande que o Rui envolveu esse o «Amar e pensar» como uma espécie de alfa e
ómega de toda a atividade humana. A partir daí, pergunto-me sempre se haverá
outros temas que nos façam verdadeiramente felizes, completos. Sinceramente,
até hoje, não encontro mais nenhuns temas apesar da vastidão dos conceitos. Mas
o Rui Pereira é assim. Levanta questões, não teme labirintos e dá-nos a ponta
de um fio por vezes envolto em meadas aparentemente impossíveis de desfiar.
Repetia muitas vezes, em diálogo, o seu «Achas?» que nos põe a pensar no que
acabámos de dizer. Por proposta dele, a Deriva Editores, e sob a nossa responsabilidade,
conheceu e editou Vicente Romano, o já citado Santiago Lòpez-Petit e Angel
Rekalde. Sensação extraordinária esta de os ver na bibliografia.
O livro «Pensar em tempos de não-pensamento» lê-se sem nunca
o conseguir largar até ao fim. Um conselho: nada nos deve interromper na sua
leitura, porque há uma ligação entre os capítulos resultantes de um pensamento
sólido, que põe a nu estes tempos contemporâneos de brutalidade e que se
reflete no cuidado entre a fraseologia académica a queo autor não pode fugir e
a explicação para públicos mais heterogéneos . Atenção: não julguem o livro
fácil. Não o é. Obriga-nos a voltar atrás em algumas frases, parar e seguir
depois de nos interrogarmo-nos bastas vezes. Por isso mesmo é um livro
excecional. O Rui não faz cedências. O livro editado pela Grácio Editor é o nº5
da coleção Poiesis. Podem pedi-lo para editor@ruigracio.com,
cujo sítio é o www.ruigracio.com . A
obra é constituída por capítulos: Apresentação,
A Coisa, Fundações, Casa das Máquinas, Gramática, Pensar, Síntese e as
inevitáveis e importantíssimas referências.
O livro foi apresentado em forma de cinco conferências a convite da Biblioteca
Pública de Gondomar.
Não pensem o «brutal» como mais uma denúncia da guerra, ou
da boçalidade de um Trump, de um Bolsonaro ou de Duterte. Também o é, mas o Rui
não quer ir somente por aí. O seu pensamente vai muito mais longe. Atrevo-me a
apresentar-vos algumas questões propostas pelo autor: o que fez esta sociedade
por nós, senão o voltar ao «pensamento mágico» que dantes serviria para aplacar
a ira dos deuses e, agora, para não incomodar muito os senhores do mundo? O que
ela fez para nos tornar viciados em entretenimento alarve? Até onde nos levou
um sistema escolar que não questiona, que não lê, que não consegue escrever os
poucos vocábulos de que os alunos (e alguns professores) dispõem? Quem nos
levou à sacralização do deus-dinheiro? Terá isso a ver com a cultura dominante
de um egoísmo hedónico que nos faz competir e esmagar o outro, em vez da
necessária partilha? Que mercado é esse que nos levará seguramente para a
catástrofe? Qual o papel dos media na edificação da «brutalização contemporânea»,
nas palavras de Rui Pereira? Quem ainda nos faz trabalhar pelo trabalho
estupidificante na era da tecnocracia? Quem promove a precariedade e porque
somos cada vez mais? Por que já não existem contratos fiáveis, mesmo aqueles
que são assinados pelos Estados? Que razão levou à transformação da notícia ao
conjunto de fait-divers com que nos
bombardeiam a toda a hora, a todos os minutos? Por que razão aceitamos que a
qualquer momento da nossa vida podemos cair na miséria mais absoluta e achar
isso normal?
Mas damos a palavra a Rui Pereira: «Eis pois o desafio que
me proponho e que vos proponho, nestas – enfrentemos o nome –
‘’conferências’’sobre o pensar e o pensamento, num tempo que chamo de
não-pensamento e em que, decerto, tudo parece estar já dito, quando se olham as
prateleiras de qualquer biblioteca. Por essa razão, o meu método será, em,
larga medida, o de tomar palavras a outros. Autores, obras, fragmentos,
palavras que nos ajudem a responder a questões que se nos depararão. O meu
método fundamental será, assim, o da citação. O da transcrição ou da paráfrase,
isto é, o do recurso do pensamento ao próprio pensamento que o antecede.»
Atrevo-me igualmente a dizer que a clarificação excecional do pensamento de Rui
Pereira é fundamentado nas transcrições e citações que o faz e na panóplia
fantástica de autores que nos dá a conhecer, mesmo em frases e ideias que nunca
pensaríamos pudessem ser ditas pelos que julgamos conhecer há muito. E assim,
certeiro, usa uma frase de Bragança de Miranda «rio-me sempre um pouco com
aqueles que fingem que não citam, que não querem citar de modo nenhum. Mas, no
fundo, cita-se sempre, mais ou menos obscuramente».
Para concluir, o método do pensar é proposto pelo
contraditório. O pensar torna-se pensar porque luta contra o pensar. Ou seja,
pensar, como diz Santiago Lòpez-Petit «será interromper o senso comum, perfurar
a realidade, destruir o manto da obviedade que a protege, em suma, abrir
espaços de vida». Rui Pereira finaliza com algumas palavras sobre aquilo que
chamo de método de pensar: «De certa
maneira, tentei, com estas conferências trazer-vos aqui, algo do que julgo
poder ser um exercício deste tipo. Talvez o indeferentismo imperante, esse
estranho batido de impotência misturada com indiferença, reclame de nós a
reabilitação, teórica e não só teórica, (...) que sejam capazes de nos devolver
a notícia de nós, no quadro de uma ‘’interioridade natural’’ (ou ‘’mental’’)
que nos afaste da cegueira moral, da anestesiada dessensibilização de que
falava Zygmunt Bauman.
Aproveito, para felicitar Rui Pereira pela qualidade não só
das transcrições, mas também a interpretação que delas faz. É raro ver citar (por
exemplo Debord) com o rigor com que o faz. Vejo, amiúde, falar do «espetáculo»
debordiano como «entretenimento». Em Debord nunca o foi e é vítima desta
subversão, diria, de estado. Trata-se, pois, de espetáculo dominado pelas
trocas de mercadorias com o seu valor de troca e de uso que, mais tarde, veio a
desenvolver o conceito de «espetáculo integrado» em que tudo é alienação,
porque integrado num sistema global de «brutalidade contemporânea» baseado no
mercado global. E quantos outros autores são aqui expostos na eterna
preocupação de resgatar o humano. O pensamento do Rui contribui para isso, sem
dúvida.
António Luís Catarino
Coimbra, 11 de outubro de 2019