Neandertal: Foto NatNature |
Repentinamente, dei-me com o livro da sueca Karin Bojs entre mãos. «A Grande Família Europeia – Os primeiros 54
000 anos». Não é, como o editor nos
quer fazer crer logo na capa, a história do Homo Sapiens na Europa. Acompanhei
com alguma simpatia a obsessão da autora em descobrir a sua geneologia que
depois passou a linhagem da sua família. A maior parte de quem tenta fazer isto
páram todos no século XVII e já é uma sorte se o conseguirem. Pessoalmente,
pensando bem, não aconselho ninguém a fazê-lo sem algum aconselhamento prévio:
pode haver surpresas e darmos com linhagens esquisitas e estranhas logo em
meados do século XX, faço-me entender? Basta um familiar ou amigo mais próximo,
tão próximo, que se intrometeu na génese do nosso eventual auto-conhecimento da
família para termos um baque no coração. A sério, se o fizerem estejam
preparados para tudo!
Entretanto, quanto aos racistas ou racialistas é melhor que
não o leiam. Aliás, nem sei se o saberiam interpretar, mas basta analisar as
novas experiências e dados confirmados com o ADN e paf! lá se vai a
teoria racista de cada povo ter desenvolvido o seu próprio caminho uns com mais
inteligência e capacidade de sobrevivência que outros. Chama-se agora a este
tipo de «teoria» (desculpem se estou a exagerar!) de «migracionismo»
infelizmente muito em voga nos países do grupo de Visegrado e nos EUA. É
possível que se espalhe um pouco por toda a Europa dentro de alguns anos, dada
a situação política e social que a faz germinar como cogumelos no húmus da
terra. (Reparem que eu disse «húmus da terra» para imitar o valter hugo mãe,
senão teria dito simplesmente a humidade da terra).
Ora, voltemos a Karin Bojs de quem me esqueci de dizer que
não é cientista. Foi simplesmente jornalista, editora-chefe da prestigiada
revista científica Dagens Nyheter e
mais que premiada no meio, como ser doutora honoris
causa da Universidade de Estocolmo.
Vamos a isto: está provado que os neandertais se cruzaram
com os humanos modernos há 54 000 anos. Portanto, os genes estão cá nos nossos
corpinhos, entre 2% a 6%. Os bandos dos nossos antepassados eram um pouco
canhestros, sem muita motricidade fina, musculosos, com o cérebro de grande
volume, produtor pouco sofisticado de arte e de instrumentos, tinham pele
escura, o pêlo que lhe cobria o corpo era castanho escuro, assim como o cabelo
e os olhos escuros. Evitavam os humanos modernos e é possível que estes se
tenham afastado moderadamente dos bandos deles, mas não se prova que tenha
havido casos de violência constante com os humanos modernos, tendo-se cruzado
inclusive e trocado instrumentos e peles. Os humanos modernos, tinham algumas
tecnologias de caça, pesca e recoleção e sabiam defender-se melhor do frio da
Era Glacial. São estes a quem chamamos de Homo
Sapiens Sapiens e produziam arte e música. Faziam enterramentos cultuais e
tinham olhos azuis, cabelos castanhos e pele escura, visto que está mais
provado que viemos todos de África e aproveitámos uma mudança climática mais suave
para nos espalharmos pela Ásia, pelas Américas através dos maciços gelados do
Norte e de uma terra hoje desaparecida entre a Grã-Bretanha e a Suécia – a Doggerland.
As águas do mar tinham baixado até ao ponto de permitirem grandes migrações. A
Europa foi também ocupada por bandos de Homens e Mulheres com a tal pele escura
e olhos azuis, visto que vindo todos de África levou centenas de milhar de anos
a mudar a pigmentação da pele para absorverem os poucos raios de sol que existiam.
Mas que viemos todos de África os genes estão aí para o comprovar e exigir
que afinal se trata de uma só raça que existe – a humana. Embora com um cérebro
mais pequeno (o tamanho é irrelevante, neste caso!), éramos mais hábeis a
fabricar instrumentos e a viver em grupo, o que nos salvou da extinção. E
também é provável que muitos dos nossos antepassados mais espigadotes ou jovens
com as hormonas aos saltos tivessem tido relações sexuais com neandertais. Corrijo:
não é provável, é certo. O que é mesmo verdadeiro é a extinção dos neandertais,
mas ao que se julga agora não foram os humanos modernos que os extinguiram em
massa. Foi a inabilidade em utilizar os recursos naturais para a Era Glacial que se aproximava.
Vamos a «Eva».
Como sabem, os cientistas são uns brincalhões. Já com a Lucy, deram-lhe o nome
por estarem a ouvir o «Lucy in the sky with diamonds (LSD)» dos Beatles. Esta
ironia é mais fina. Eva, seguindo o rasto de ADN mitocondrial (que passa das mães para os filhos, sendo por isso
uma linhagem feminina), viveu há 200 000
anos e veio a ser a ancestral materna de
todos os seres humanos que vivem hoje, Há cerca de 60 000 anos, a linhagem saiu de África e espalhou-se para todo o
mundo. Em África corresponde o genoma L. Quando se «saiu» de África os genomas
que encontramos são o L3, o M, o D, o N, o R, o RO e o U (que se subdivide em 6
genomas). Na Europa é o genoma U que
é preponderante mas não muito mais que os outros genomas todos do mundo onde
aparecem igualmente. E nós estamos carregadinhos de todos eles.
No entanto o mais difícil de encontrar, mas também o mais
seguro é o cromossoma Y, que passa
de pai para filho e que tem mais ADN que as mitocôndrias maternas. É a nossa
linha patriarcal a quem os antropólogos e arqueólogos deram o nome de «Adão». Estavam à espera de quê? É
lógico que o encontrámos igualmente em África. Alguma vez estes nossos
antepassados se uniram e deram origem à humanidade. Para o bem ou para o mal.
Segundo a autora, «Acabou-se a discussão. A teoria multirregional estava morta: os humanos
anatomicamente modernos têm origem em África».
Antes da forte glaciação de há 54 000 anos atrás, já
estávamos espalhados por todo o mundo, embora fôssemos muito, muito poucos. Os
bandos que existiam eram constituídos não mais do que umas dezenas e foram os neandertais que
nos salvaram antes de se extinguirem. As crianças nascidas desses encontros com
os humanos modernos sobreviveram mais porque não tinham consaguinidade. Afinal,
os neandertais não se extinguiram completamente: nós somo também eles.
Obrigado, portanto, neandertais por uma imunidade bem conseguida.
Quando em 54 000 anos
veio a Era Glacial (das quatro existentes na vida da Terra) os nossos
antepassados recuaram para sul à procura terras mais amenas, se assim se pode
dizer. A Europa do sul e certas zonas do norte poderiam ser habitadas, mas foi
o Médio Oriente o mais apetecido. Por lá ficámos, uns recolectores, outros já
mais sedentários embora não se possa falar ainda de agricultura ou domesticação
de animais. Fomos outra vez para o sul da Europa e Norte de África, américas e
Oceania. Não parámos. O Degelo veio e foi uma
nova vida. Aumentámos a qualidade da tecnologia, fizémos trocas por trocas,
casámo-nos uns com os outros, tornámo-nos mais imunes às doenças e epidemias,
aumentámos o tempo médio de vida e aumentámos, por isso, o número de indivíduos.
Mas...há 38 500 anos, como prova o
Homem de Kostenki descoberto na Rússia, ainda éramos pretos, tínhamos o cabelo
encaracolado e castanho escuro e predominavam os tais olhos azuis e claros. Ou
seja, fomos ficando mais branquelas para a pigmentação absorver melhor os raios
solares. Houve outros que não necessitariam dessa pigmentação, como em África,
Oceania e Américas. Mas o livro é riquíssimo em provas sustentadas pelo ADN em
Universidades e Institutos de referência em todo o mundo.
Finalmente, o meu espanto: Karin Bojs, agora na reforma e
sem a canga formal do jornalismo, fazendo a sua pesquisa científica livremente,
falando à vontade com os cientistas que antes tinha entrevistado para a sua
revista científica sem as cautelas institucionais a que são obrigados os
jornalistas e os cientistas, reparou num incómodo, numa preocupação nunca antes
referida: o racismo crescente na comunidade
científica e em estudantes principalmente na Europa Central (já nem se fala
na América do Norte!). Ela própria assistiu a um boicote a uma conferência
sobre apresentação de resultados antropológicos na Universidade de Brno, na
República Checa. Foi-lhes dada uma sala pequeníssima onde não cabiam quase 300
pessoas interessadas. Subitamente, entram em cena alguns professores e alunos,
arrastando mais cadeiras para a sala de modo a torná-la sufocante, que
contestaram abertamente as teorias baseadas em ADN, agora com uma ressalva: sim,
houve algumas migrações, mas não tantas que não permitam a defesa da «verdade»
deles: que os povos isoladamente desenvolveram-se tendo em conta a inteligência
e os laços fortes e comunitários, génese de um povo e de uma nação. Chamam-se a
estes senhores fascistas, os «migracionistas» de que falei atrás, cada vez mais
e mais interventivos e cujas teorias estão muito longe de qualquer prova mínima
que seja. Mas não deixa de ser irónico o nome científico dado à nossa mãe
mitocondrial e ao nosso pai cromossomático. Adão e Eva!
Mas o livro não é só isto. Vale mesmo a pena lê-lo. 420 páginas
de puro prazer e um enxerto de porrada nos neonazis.
António Luís Catarino
Coimbra, 21 de Agosto de 2019
A Grande Família Europeia, de Karin Bojs Ed. Portuguesa Foto: Bertrand Editora |