Yuval Noah Harari |
Gostei de ler Yuval Noah Harari e a sua trilogia de
«Sapiens», «Homo Deus» e «21 Lições para o Séc. XXI». O primeiro é o mais conseguido no âmbito da
História e da Antropologia, embora a sua posição sobre a obra do Sapiens não seja nova. Lembro-me da Deriva Editores ter publicado o livro de
John Zerzan, autor que esteve na organização das grandes jornadas de luta
anticapitalista de Seattle, intitulado «Futuro Primitivo» que defendia uma tese
ligeiramente diferente da de Harari. Para o primeiro, o Sapiens esteve dezenas de
milhar de anos sem querer adoptar a
agricultura e a domesticação confinando-se ao orgulho da caça e recolecção. Já
para Harari as coisas não se passaram bem assim, tendo o homem tido todo o
empenho em demonstrar as novidades técnicas e produtivas na agricultura e na
domesticação de animais, destruindo a Natureza a partir desse momento. A base
da desigualdade, concordam os dois, foi na apropriação dos meios de produção de
uma elite política e religiosa assente no esclavagismo e na desigualdade de
distribuição da produção com a respectiva acumulação de riqueza...até hoje. Bom,
Engels já tinha aflorado e aprofundado o caso com os dados que tinha no séc.
XIX, mas adiante.
Ora, com as duas últimas distopias de Harari, porque da
construção de futuros sombrios se trata, saímos incomodados para não dizer pior
- aterrorizados. O nosso autor é talvez a coqueluche do Facebook, Amazon, Google e de
todas as companhias que laboram em Sillicon Valley, mas não deixa de nos avisar
dos perigos da tecnologia que aí vem, pondo em causa a continuação da nossa
espécie, tal como a vimos hoje. Vale a pena lê-lo por isso mesmo.
Quanto ao desafio tecnológico será muito difícil não
concordar com ele na construção do futuro que aí vem: o nosso corpo não vai
mais pertencer-nos. A biotecnologia, a nanobiologia e os algoritmos vão dizer o
que é bom para nós. Aceitaremos, de bom grado, que nanopartículas naveguem alegres pela nossa corrente sanguínea e
libertem através do controlo do nosso smartphone, um pouco de paracetamol para
nos sentirmos menos febris, ou qualquer droga legal que compraremos na Google
Store para nos sentirmos eufóricos. Se fumarmos um cigarro, o telemóvel
avisa-nos que as nanopartículas detectaram, no pulmão esquerdo, 17 substâncias cancerígenas pelo que irão atacá-las de imediato. Se comermos uma chanfana, avisa-nos do alto colestrol no corpo, libertando a sinvastatina necessária. Ou seja, ficaremos num estado de doença permanente. Estaremos assim, com a
biotecnologia pronta a funcionar com mais chip, menos chip no nosso corpo como
quem faz um jogo electrónico conforme o dinheiro que dermos por eles. Tenhamos
nós emprego ou trabalho, porque a robótica vai-nos tirar muitos, muitos
empregos.
Vamos portanto ser imortais se assim tivermos milhões de
dólares para o ser. Atenção: Harari não fala em imortalidade, antes em amortalidade, o que é diferente. Poderemos
gastar milhões em biotecnologia e mudar partes do nosso corpo, mas se um
veículo autogovernado de baixo custo (um Fiat Punto, modelo de 2052, por exemplo)
não nos vir na passadeira, splash!
lá vai a imortalidade e os milhões para o caneco.
Desta vez, isto não é como nas revoluções tecnológicas anteriores,
não pensem nisso. Mais de metade da Humanidade ou ciborgs parciais que é o que
seremos e que partilharemos o mundo com ciborgs totais, não terão nada para fazer e para não dar origem a revoluções, o melhor
é, segundo Harari, dar aos excluídos e precários um Rendimento Mínimo
Garantido. Onde vamos buscar o dinheiro? Simples: impostos substanciais sobre
as indústrias informáticas, de robótica e farmacêuticas. Eles darão com todo o
gosto, certezinha! Os robôs pagarão então as nossas necessidades básicas, seja lá o que isso for. As desigualdades serão enormes, com 1% da população mais
rica a dominar mais de metade do PIB mundial e a viver em bolhas climáticas purificadas nas
cidades muralhadas, enquanto que nós aguentaremos com o sol tórrido e o charco
de águas do mar que invadirão as cidades costeiras. Claro que o algoritmo não
pode prever as mudanças climáticas (nem isso o deve incomodar sobremaneira) pelo que as migrações serão bíblicas. Para onde,
não se sabe ainda bem.
Por falar em Bíblia, encontramos, segundo a minha opinião, a
grande contradição de Yuval Noah Harari. Segundo ele, os futuros algoritmos que
estarão em permanência ligados ao nosso cérebro, vão dar-nos o que desejamos,
como já se disse acima, e, dar-nos-ão, para além do electrodoméstico ideal, o
melhor político populista, sustentado nas fake
news, segundo o nosso perfil e escolhas nas redes sociais e teremos acesso
ao nosso padre, pastor, mesmo um emir ou um lama. As religiões decairão como nunca e o Iluminismo e a democracia serão
obsoletos. Dei comigo a pensar exactamente o contrário, mesmo que o Iluminismo
esteja moribundo. Harari não fala em Resistentes,
em Replicants como em Blade Runner ou como no Manifesto Comunista, embora defenda que
o futuro tenha mais a ver com Marx do que com Spielberg.
Haverá sempre
resistência e construção política contra a nova «humanidade baseada na robótica
e na biotecnologia» que não é muito aprofundada em Harari. Ou seja, o desaparecimento
da conjunção inteligência/consciência,
sendo que a primeira ganhará no futuro separando-se irremediavelmente da
segunda. Não será assim, porque o Homem não abandonará a consciência e essa vem
do socius, da vida em comum, da
necessária reaproximação à religião e ao político. Por mim, que me religuei ao
catolicismo de que estava afastado há muito, não penso deixar a Humanidade
entregue a si própria e penso lutar contra o tecnofascismo através da resistência/inteligência/consciência.
Se essa consciência
se perder, não teremos nunca dor, não amaremos (não acredito no algoritmo para este
particular), não nos indignaremos, não nos emocionaremos, não ajudaremos o
outro, não resistiremos, nem construiremos o político, nem a utopia. Quereriam viver num
mundo assim?
Por fim, a lição 20 e 21 de Harari, sofre de um enigma que
ele próprio levantou: sendo budista, não interferir será a solução lógica para
ele. A pura contemplação e o pacifismo pode ser a travagem deste autêntico
ataque à Humanidade sendo que deveremos estar atentos à acumulação de poder e
riqueza dessas supercompanhias com que o mundo nunca sonhou. Creio resolutamente que estar atento não basta.
António Luís Catarino
8 de Julho de 2019