segunda-feira, julho 08, 2019

21 lições para prevenir a catástrofe, contemplando-a


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Yuval Noah Harari

Gostei de ler Yuval Noah Harari e a sua trilogia de «Sapiens», «Homo Deus» e «21 Lições para o Séc. XXI».  O primeiro é o mais conseguido no âmbito da História e da Antropologia, embora a sua posição sobre a obra do Sapiens não seja nova. Lembro-me da Deriva Editores ter publicado o livro de John Zerzan, autor que esteve na organização das grandes jornadas de luta anticapitalista de Seattle, intitulado «Futuro Primitivo» que defendia uma tese ligeiramente diferente da de Harari. Para o primeiro, o Sapiens esteve dezenas de milhar de anos sem querer adoptar a agricultura e a domesticação confinando-se ao orgulho da caça e recolecção. Já para Harari as coisas não se passaram bem assim, tendo o homem tido todo o empenho em demonstrar as novidades técnicas e produtivas na agricultura e na domesticação de animais, destruindo a Natureza a partir desse momento. A base da desigualdade, concordam os dois, foi na apropriação dos meios de produção de uma elite política e religiosa assente no esclavagismo e na desigualdade de distribuição da produção com a respectiva acumulação de riqueza...até hoje. Bom, Engels já tinha aflorado e aprofundado o caso com os dados que tinha no séc. XIX, mas adiante.
Ora, com as duas últimas distopias de Harari, porque da construção de futuros sombrios se trata, saímos incomodados para não dizer pior - aterrorizados. O nosso autor é talvez a coqueluche do Facebook, Amazon, Google e de todas as companhias que laboram em Sillicon Valley, mas não deixa de nos avisar dos perigos da tecnologia que aí vem, pondo em causa a continuação da nossa espécie, tal como a vimos hoje. Vale a pena lê-lo por isso mesmo.

Quanto ao desafio tecnológico será muito difícil não concordar com ele na construção do futuro que aí vem: o nosso corpo não vai mais pertencer-nos. A biotecnologia, a nanobiologia e os algoritmos vão dizer o que é bom para nós. Aceitaremos, de bom grado, que nanopartículas naveguem alegres pela nossa corrente sanguínea e libertem através do controlo do nosso smartphone, um pouco de paracetamol para nos sentirmos menos febris, ou qualquer droga legal que compraremos na Google Store para nos sentirmos eufóricos. Se fumarmos um cigarro, o telemóvel avisa-nos que as nanopartículas detectaram, no pulmão esquerdo, 17 substâncias cancerígenas pelo que irão atacá-las de imediato. Se comermos uma chanfana, avisa-nos do alto colestrol no corpo, libertando a sinvastatina necessária. Ou seja, ficaremos num estado de doença permanente. Estaremos assim, com a biotecnologia pronta a funcionar com mais chip, menos chip no nosso corpo como quem faz um jogo electrónico conforme o dinheiro que dermos por eles. Tenhamos nós emprego ou trabalho, porque a robótica vai-nos tirar muitos, muitos empregos.

Vamos portanto ser imortais se assim tivermos milhões de dólares para o ser. Atenção: Harari não fala em imortalidade, antes em amortalidade, o que é diferente. Poderemos gastar milhões em biotecnologia e mudar partes do nosso corpo, mas se um veículo autogovernado de baixo custo (um Fiat Punto, modelo de 2052, por exemplo) não nos vir na passadeira, splash! lá vai a imortalidade e os milhões para o caneco.

Desta vez, isto não é como nas revoluções tecnológicas anteriores, não pensem nisso. Mais de metade da Humanidade ou ciborgs parciais que é o que seremos e que partilharemos o mundo com ciborgs totais, não terão nada para fazer e para não dar origem a revoluções, o melhor é, segundo Harari, dar aos excluídos e precários um Rendimento Mínimo Garantido. Onde vamos buscar o dinheiro? Simples: impostos substanciais sobre as indústrias informáticas, de robótica e farmacêuticas. Eles darão com todo o gosto, certezinha! Os robôs pagarão então as nossas necessidades básicas, seja lá o que isso for. As desigualdades serão enormes, com 1% da população mais rica a dominar mais de metade do PIB mundial e a viver em bolhas climáticas purificadas nas cidades muralhadas, enquanto que nós aguentaremos com o sol tórrido e o charco de águas do mar que invadirão as cidades costeiras. Claro que o algoritmo não pode prever as mudanças climáticas (nem isso o deve incomodar sobremaneira) pelo que as migrações serão bíblicas. Para onde, não se sabe ainda bem.

Por falar em Bíblia, encontramos, segundo a minha opinião, a grande contradição de Yuval Noah Harari. Segundo ele, os futuros algoritmos que estarão em permanência ligados ao nosso cérebro, vão dar-nos o que desejamos, como já se disse acima, e, dar-nos-ão, para além do electrodoméstico ideal, o melhor político populista, sustentado nas fake news, segundo o nosso perfil e escolhas nas redes sociais e teremos acesso ao nosso padre, pastor, mesmo um emir ou um lama. As religiões decairão como nunca e o Iluminismo e a democracia serão obsoletos. Dei comigo a pensar exactamente o contrário, mesmo que o Iluminismo esteja moribundo. Harari não fala em Resistentes, em Replicants como em Blade Runner ou como no Manifesto Comunista, embora defenda que o futuro tenha mais a ver com Marx do que com Spielberg.

Haverá sempre resistência e construção política contra a nova «humanidade baseada na robótica e na biotecnologia» que não é muito aprofundada em Harari. Ou seja, o desaparecimento da conjunção inteligência/consciência, sendo que a primeira ganhará no futuro separando-se irremediavelmente da segunda. Não será assim, porque o Homem não abandonará a consciência e essa vem do socius, da vida em comum, da necessária reaproximação à religião e ao político. Por mim, que me religuei ao catolicismo de que estava afastado há muito, não penso deixar a Humanidade entregue a si própria e penso lutar contra o tecnofascismo através da resistência/inteligência/consciência

Se essa consciência se perder, não teremos nunca dor, não amaremos (não acredito no algoritmo para este particular), não nos indignaremos, não nos emocionaremos, não ajudaremos o outro, não resistiremos, nem construiremos o político, nem a utopia. Quereriam viver num mundo assim?

Por fim, a lição 20 e 21 de Harari, sofre de um enigma que ele próprio levantou: sendo budista, não interferir será a solução lógica para ele. A pura contemplação e o pacifismo pode ser a travagem deste autêntico ataque à Humanidade sendo que deveremos estar atentos à acumulação de poder e riqueza dessas supercompanhias com que o mundo nunca sonhou. Creio resolutamente que estar atento não basta.

António Luís Catarino
8 de Julho de 2019