sexta-feira, julho 12, 2019

Populismo à esquerda, precisa-se. Ou talvez não

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Não se admirem com o título. Chantal Mouffe defende mesmo isso no seu livro Por um populismo de esquerda (Gradiva, 2019). José Neves, que leio sempre com agrado, prefaciou-o não sem, contudo, nos avisar que num momento de aumento do populismo de extrema-direita e de direita nacionalista esta hipótese não deve ser descartada pela esquerda. Neste campo, tal como a autora, coloca o Die Linke, o Podemos, o Syrisa, o Bloco de Esquerda, La France Insoumise de Mélenchon e Jeremy Corbin do Labour (lá mais para a frente, Chantal Mouffe cita igualmente Bernie Sanders) como um exemplo de uma identidade populista de esquerda. Sintomático é referir que a autora, só de raspão, analisa os regimes populistas da América do Sul que poderão, com algum esforço, ser considerados de «esquerda».

Não sei se é forçado colocar alguns destes partidos referidos atrás na área «populista de esquerda». Comecemos por analisar o conceito de «populismo». Um partido populista é definido pela sua demagogia, pelo carisma de um chefe ou líder, e promove um conjunto de propostas demasiado fáceis de entender pelo «povo». No fundo propõe o que se quer ouvir pelos descontentes. Utiliza igualmente uma linguagem simples, rasteira, contra as «elites» e utiliza a propaganda e os media com as suas «verdades irrefutáveis», mesmo que estas não se possam provar.

Chantal Mouffe (C.M.) diz-se gramsciana. Vai a Antonio Gramsci encontrar os argumentos para propôr a construção de um populismo de esquerda contraposto ao populismo de direita e de extrema-direita. Refuta o que ela chama de «essencialismo» na área da esquerda, reconhecendo nesse tal essencialismo um obstáculo sério à refundação da esquerda visto que esta se encontra amarrada a conceitos rígidos de «classe» e de uma suposta luta entre «capital e trabalho». Inclui-se no pós-marxismo. A Gramsci vai «captar a multiplicidade de formas de combate a diferentes tipos de dominação». C.M. redefine este projecto como de «radicalização da democracia» perante a existência de uma «cadeia de equivalências» numa sociedade plural que articulasse as exigências da classe trabalhadora com os novos (já não são assim tão novos, digo eu) movimentos sociais emergentes de modo a realizar um «querer comum» processo que desembocaria numa «hegemonia expansiva», sendo que esta última expressão é de Antonio Gramsci, de novo. O povo passaria então a ser um sujeito político.

Nada a opor, se não a sua inexequibilidade. Um dos companheiros de C.M. foi Ernesto Laclau que define populismo como a construção de uma barreira entre dois campos: os «miseráveis» e «os que estão no poder». Recusa a ideologia. Aponta para a construção de um regime político que pode assumir variadas formas e com vários enquadramentos sociais. Não pormenoriza ou exemplifica, nem C.M. se dá ao trabalho de o fazer.

Depois de elaborar um historial da vitória do neoliberalismo agressivo de Tatcher dos anos 80, tenta conjugar vários filófosos citando Habermas, Crouch, Rancière e Carl Schmitt (sem dizer donde este vem e que filósofo e jurista foi e ao serviço de quem!) que opõe democracia ao liberalismo e a possibilidade de uma oposição entre igualdade e liberdade. Aqui vem o populismo proposto: a diferença entre «nós» e «eles» que deve ser o alfa e ómega de toda a actividade do populismo de esquerda. Creio que Mouffe tem razão ao apresentar a raíz da radicalização da esquerda nos anos 90 e princípio do século XXI naquilo a que chama de «movimento das praças» onde coloca o Occuppy, os Indignados de Espanha e as múltiplas manifestações de protesto que assolaram toda a Europa. Agora o que vem depois, as perspectivas que coloca aos movimentos sociais e aos partidos da esquerda é o mais problemático. Mas, por defeito, não descartemos a hipótese que ela propõe: diálogo com os movimentos populistas de direita de modo a influenciar os apoiantes que embora incomodados com a presença da extrema-direita, estarão lá só pelos protestos quase sempre legítimos. Apresenta números com Corbyn a chamar gente do UKIP para o Labour e Meléchon a retirar perto de 16% de votos directamente à FN de Le Pen.

Penso que aqui tocou na ferida dos «essencialistas» pelo que explica adiante as «diferenças» destes populismos, os de direita e os de esquerda. Os primeiros, têm o sentido de nacionalismo, da identidade, da força e são claramente neoliberais, talvez mais agressivos que os ditos liberais, eles mesmos. Não acreditam na igualdade e são ferozmente individualistas. O populismo de esquerda traduz-se num aprofundamento e alargamento da democracia radical, que recusa ser directa, por sorteio (David van Reybrouk defende o sorteio contra as eleições num livro que me veio parar às mãos e citado pela autora) ou somente representativa, embora reconheça um papel importante a esta última. O que ela chama de um programa «agónico» (ou marcial e heróico?) não será mais do que a construção de um «povo» que entende o seu inimigo como a «oligarquia». Não rejeita traços afectivos (?) de nacionalismo, nem uma liderança, bem diferente de um chefe ou de um líder incontestado. Para isso não poderemos contar só com a classe trabalhadora. Temos de contar com uma «cadeia de equivalências» sempre em contacto plural com o movimento LGBTI, feministas, imigrantes, classe média em situação precária, movimentos ambientalistas e ecologistas, etc. O objectivo é criar uma situação que leve a uma «nova hegemonia que permita a radicalização da democracia».

Insurreição e revolução são alternativas fora do baralho de Chantal Mouffe. Afirma não precisar, a esquerda, de um corte revolucionário, mas sim de uma espécie de dètournement do regime liberal-democrático! Portanto, os dados estão lançados: trata-se de aprofundar uma «democracia radical e plural», influenciando e transformando as instituições democráticas existentes.

C.M. defende que, para atingir a formação hegemónica do populismo de esquerda, dever-se-á colocar em causa o campo económico «essencialista». Junta a esse campo a natureza cultural, política e jurídica, numa articulação de «senso comum» no quadro normativo de uma dada sociedade. Nem mais! ... Venha daí o «senso comum» para ajudar à festa! E eu que pensava num esqueleto jurídico forte que evitasse esse senso comum, expressão tão liberal que é. Ora, recusando a extrema-esquerda (ainda há pouco uma polémica no Bloco de Esquerda levantou-se quando Catarina Martins, numa entrevista, recusou esta matriz para o Bloco, substituindo-o por «radical») Chantal Mouffe apresenta-nos três tipos de política à esquerda:

«Reformismo puro» que aceita os princípios da formação social neoliberal.

«Reformismo Radical» que aceitando os princípios da ordem liberal, procura pôr em prática uma formação diferente.

«Política revolucionária» que exige uma ruptura total com a ordem social e política existente. São os nefastos marxistas-leninistas-trotskistas, bem como os anarquistas.

Como já devem ter reparado a autora pertence à segunda opção enquanto que os outros são os essencialistas (mesmo os que defendem hoje os princípios fundadores da social-democracia) que recusam ver o Estado como um campo neutro como os reformistas radicais o querem construir. Ou seja, o objectivo não é tomar o poder do Estado como diz Marx, mas «tornar-se Estado» como ela diz que disse Gramsci (em que conjuntura, pergunto eu?).

Reivindica, a autora, uma dimensão de luta anticapitalista, mas não dá essa hegemonia à classe trabalhadora. Hoje, segundo C.M. (e eu concordo) há cada vez mais um discurso anticapitalista em vastos sectores da população, mas não necessariamente de esquerda. Se assim é, só o reformismo radical está em condições de o captar. O que eu não consigo concordar é a aparente desvalorização do trabalho que parece emergir aqui.

Finalizando: depois de Marx, Bakunine, levarem das boas neste livro, nem Hardt e Negri estão a salvo. Defendendo a democracia representativa, Chantal Mouffe, ataca estes últimos autores por causa da sua estratégia de renúncia, deserção e êxodo para que se crie uma alternativa anticapitalista com a inevitabilidade de tomar o poder com uma imensa multidão (os 99%?) e apta a conquistar os meios de produção. É lógico, que tanto Hardt como Negri defendem a estratégia do «comum» que não existe em nenhuma Constituição iluminista. A propriedade ou é privada, pública, cooperativa, mas «comum» está quieto!... Mouffe chega ao ponto de não rejeitar os partidos políticos e os parlamentos actuais que ainda desempenham, com todas as maleitas, um papel simbólico. Pergunta-se, humildemente, de quê? Conclui, Chantal Mouffe, afirmando entre outras coisas, a inadequação da palavra «comum» e a crítica à crítica da democracia parlamentar, ainda fogosa, não fossem os reformistas radicais propor torná-la ainda mais representativa.

António Luís Catarino
12 de julho de 2019