25 de Novembro de 1970: Yukio Mishima apela à insurreição militar antes de pôr termo à vida através de seppuku |
Li Mishima muito novo. Se eu vos dissesse demasiado
novo seria o argumento que Mishima utilizou para explicar o monte de livros que
leu na infância e que o levou à melancolia que por vezes assolava a sua vida.
Para mim e para os que me rodeavam, nos anos 70, o autor aparecia-nos como uma
espécie de herói maldito, incompreendido, solitário e encontrava-se no panteão
dos melhores escritores. Defendíamo-lo do facto de ser de extrema-direita porque
esse rótulo era demasiado redutor para um tipo da sua estirpe. Bastava ser um
excelente escritor que reflectia igualmente as nossas preocupações, frustrações
e caminhava connosco na recusa total ao capitalismo que tudo subtrai à
autenticidade e soma em voragem de espíritos livres. Bastava-nos isso e o seu visível niilismo.
A sua
morte deu-se a 25 de novembro de 1970 tentando um golpe de estado que fracassou num
Japão já rendido ao esquecimento dos valores tradicionais samurais e da mística
imperial. Agora pontificava o imperialismo americano. Asseguro-vos que tanto eu
como os meus amigos pouco falámos então desse seppuku, ação que
nos pareceu óbvia em Mishima, mas que contudo não a compreendíamos por completo. Li, na ocasião, O Marinheiro que
perdeu as graças do mar e O Tumulto das ondas. Foi com alguma
sensação de desconforto que vi as imagens de uma sessão de Yukio Mishima na Universidade de Tóquio
efervescente, em 1968, onde vários estudantes de capacete militar e em atitude agressiva
o insultavam e não deixavam ouvi-lo. Recusou então protecção policial e clamava
pelo que então, pensava, os unia: a sociedade moderna, o capitalismo, o consumo
desenfreado e a tecnologia. Não suportava um exército japonês sem armas e o fim
do culto ao imperador, factos que não podiam ser aceites pela esquerda. Nunca o
poderiam ser.
Dois anos depois, faz outro discurso agora na parada de um
quartel: sequestrou o ministro da defesa e ele mais seis seguidores com as
tiras de kamikase na cabeça e fardados proclamam um novo
Japão e apelam aos soldados que se revoltem e assumam o poder.
Ridicularizaram-no e riram-se dele na parada do quartel enquanto as forças
especiais entravam de rompante nas salas procurando o grupo de Mishima. Antes,
porém, libertando quatro jovens seguidores pede ao seu braço direito que o
ajude a fazer o seppuku. Ajoelhando-se com as pernas em cruz, usa
um pequeno punhal para esventrar-se, enquanto o seu companheiro lhe corta a
cabeça com um sabre. Depois, este último, mata-se.
Quando, nestes dias passei por uma livraria, vi um livro de
Yukio Mishima que não sabia que existia. Vida à venda editado
pela Livros do Brasil e com tradução de Hélder Moura Pereira. Levou 51
anos a chegar a Portugal. É evidente que não o li da mesma maneira que o lia
quando tinha 16 ou 17 anos, mas a minha emoção foi a mesma. E relaciono-me, por
vezes mal, comigo e com o mundo, porque sei no que ele se tornou e no pesadelo
que poderá vir a tornar-se. O seu acto foi, até certo ponto, um mau presságio. Mishima era um soldado aristocrata adepto das artes
marciais e obcecado pelo corpo. Escrevia dando asas à melancolia já citada e à
raiva e mesmo ódio que sentia pelas baratas, ou picles avinagrados, que
equiparava às pessoas com quem se cruzava na rua. Tentava extirpar a sua
consciência provavelmente para se sentir num eterno vazio que só conquistou com
a sua morte. Também via baratas a saírem das letras de jornal, metáfora para a
manipulação das ideias e dos espíritos, através da conspiração universal que
destruiria a heterogeneidade dos povos e particularmente a cultura japonesa.
Partilho convosco algumas dos trechos que sublinhei tentando
entendê-lo melhor dois anos antes da sua morte, visto que este livro foi
escrito em 1968:
«(…) – Sim – respondeu calmamente Hanio. – Porquê a
surpresa? Já toda a gente percebeu que a vida humana não tem qualquer sentido e
que as pessoas não passam de meras marionetas. Portanto, porquê tanta
admiração?»
«(…) Agora, deve ser capaz de alcançar com os dedos o
objeto duro e negro que está em cima da mesa. Segure-o bem. Isso mesmo. Mas não
toque ainda no gatilho. Leve-o agora devagar até junto da cabeça. Tenha calma e
relaxe os ombros. Sente-se melhor assim, de certeza. Pressione o cano contra a
têmpora. Deve estar um pouco frio, mas agradável, não é? Transmite uma certa
sensação de frescura, não acha? E também de alívio, como quando se tem febre e
se aplica uma pacho de água fria na testa. Agora, com cuidado, ponha o
indicador no gatilho…»
«(…) Pensando bem, é a primeira vez que olho de perto
para um corpo sem vida. Nem os corpos da minha mãe e do meu pai cheguei a ver
assim. Um corpo morto faz-me lembrar uma garrafa de uísque. Quando se pega nela
e cai, o conteúdo derrama-se. Nada mais natural.»
«(…) Pensou em si como já tivesse morrido. A moral, as
emoções, tudo o resto – nada fazia sentido. Estava completamente livre. E, no
entanto, o amor que acabada de morrer sentira por ele continuava a pesar-lhe na
consciência. Não chegara à conclusão de que outras pessoas não representavam
para ele mais do que baratas?»
«(…) Há já muito tempo que Hanio não ia à cidade. Não se
via qualquer indício de morte. As pessoas estavam metidas até ao pescoço na sua
vida quotidiana. Pareciam caminhar como se fossem picles humanos.»
E é com estas expressões e outras bem mais violentas que um tipo como Mishima na voracidade de se
eximir a qualquer emoção para sentir-se livre, cai.
António Luís Catarino
17 de Julho de 2019