Num livro de Sophie Wahnich que passou relativamente despercebido
»A Defesa do Terror. Liberdade ou Morte na Revolução Francesa», Zizek dá-nos
uma visão muito peculiar do Terror no seu prefácio, atualizado recentemente. O
Terror, sabêmo-lo sem grandes dúvidas políticas ou existenciais que este foi
sempre uma prerrogativa dos Estados modernos. A Revolução Francesa surge assim
como uma espécie de argumento inicial onde se vai captar a essência do Terror
nas democracias contemporâneas. Os historiadores neoliberais preferem, segundo
o mesmo Zizek, um 1789 sem 1793, o período jacobino mais radical liderado por
Robespierre. 1789 seria então o início da liberdade iluminista, da fraternidade
e da igualdade natural entre os homens. 1793, o período a que se chamou de
Terror, seria assim uma espécie de excrescência onde foi guilhotinado um rei
que, segundo um discurso histórico de Robespierre na assembleia nacional, não o
foi por ter cometido qualquer crime, mas sim pelo facto de ser rei, sendo isto
um insulto para toda uma nação revolucionária. Não será por acaso que estes
mesmos historiadores neoliberais afirmam que o período iniciado em 1789 acabou
precisamente em 1989 com a queda do muro de Berlim e o fim das ditaduras das
democracias populares de Leste. O fim da História, portanto, e o início do
idílio liberal, diga-se, da lógica do mercado e do capitalismo, vencedor em
toda a linha e em todos os recantos do mundo chamando a isso «globalização».
Fazem por esquecer as bases construídas do primeiro Estado Social do mundo:
1793, o denominado Terror, «defensivo» na taxonomia de Zizek, fez surgir o
apoio à velhice, à viuvez, à doença, ao desemprego, à fome instituída por anos
de terror feudal, às obrigações humilhantes de um povo em ebulição contra os
antigos senhores. Pela pressão revolucionária das mulheres francesas (que,
aliás, nunca tiveram direito ao voto) instituiu-se o ensino básico obrigatório,
a Lei dos Máximos onde se fixava o preço de produtos essenciais, o sistema
decimal que regulava também, proporcionalmente, os impostos e evitava a
corrupção. O orgulho sans culotte,
dos montanheses e da Conspiração dos Iguais de Babeuf e de Anarchisis Cloots
instituiram o Terror? Claro que sim, mas em contraponto ao Terror do Estado.
Serve este preâmbulo, para continuarmos com Zizek e a definição que ele faz de
Terror «ofensivo», o de Estado: o século XX é pródigo em exemplos com a
carnificina imperialista da I Guerra Mundial, a crise criminosa e especulativa
de 1929, o aparecimento e legitimação do fascismo clássico, a demência
nacionalista (o «Terror Poético», expressão de Zizek) e racista, os milhões
excluídos pelo capitalismo e as prisões em massa do estalinismo, a II Guerra
Mundial com os seus 60 milhões de mortos. Fiquemos por aqui. Zizek
apresenta-nos agora a matriz da ofensiva do Terror de Estado: para este
filósofo, este só existe depois de uma legitimação constitucional. À
Constituição de 1935 da URSS, Estaline inicia os processos de 1936/37; 1933,
marca a constituição nazi e as Leis de Nuremberga até 1935, e não será preciso
ir mais longe para perceber que a Constituição de 1933 no salazarismo levou às
prisões em massa dos seus opositores e na criação de campos de concentração do
Tarrafal e de S. Nicolau; toda a repressão será então baseada na legitimação
constitucional e num conceito terrível ligado intimamente ao Terror: a
«normalização». A CIA normalizou o Chile, em 1973 ironicamente a 11 de
setembro, a Argentina, a Bolívia, o Uruguai e o Brasil, pela inanidade da
Operação Condor. Foi assim também no Congo, no Uganda, no Ruanda, na Bósnia e
na Sérvia. A normalização atual exige a política neoliberal única, a etnia
única, a economia de mercado única, a precariedade do trabalho e a sua
desvalorização contínua, a luta sem limites contra os pobres, os excluídos, os
refugiados. A globalização fará o resto e já não se trata de uma globalização
de mercados. É, agora, uma globalização militar que institui uma Estado-Guerra
de guerra permanente a que Bush deu o nome justificadíssimo de «Justiça
Infinita» aquando do acontecimento niilista do 11 de setembro. O Estado-Guerra
é agora um estado de Terror alicerçado num fascismo pós-moderno, segundo o
filósofo catalão Santiago López-Petit, que só ainda não é o fascismo clássico
porque este se torna incómodo para os seus objetivos atuais. Não se trata de
criar um movimento popular fascista, unipartidário, de rua, de turbas violentas.
Trata-se isso sim de um fascismo de base eleitoral, vingativo perante o Islão,
de procurar inimigos nas ruas, nos bairros, nos pedidos de delação popular, de
criação de milícias afastando as possibilidades multiculturais e procurando o
etnicamente puro ou comportamentalmente aceitável. A religião surgiria assim
como o alfa e o ómega do fascismo pós-moderno do Estado. Será então impossível
afastar o capitalismo deste objetivo. Quanto mais nos aparece militarizado,
mais frágil se torna e isso poderá ser perigosamente letal. A identificação do
inimigo é tão perigosa como a identificação do amigo. Este último deverá ser
branco, cristão (se possível, fundamentalista), empregado e principalmente
disposto a extirpar os inimigos do seu bairro, da sua cidade, até da sua
família. Deverá ser igualmente obediente e evitar colocar questões que possam
diminuir a moral que se quer alta, como em estado de guerra permanente.
Identificar os inimigos é tão penoso como a identificação dos amigos. Não se
sabe quem são porque o Estado não sabe combater o anonimato, nem as metásteses
das organizações do terror que se multiplicam indefinidamente. Só o Islão lhe
dá essa identidade, mas entre o Estado Islâmico (atentem na designação «Estado»)
cujo terror assenta igualmente na legitimidade constitucional do Corão, a sharia, a sua própria normalização para
instituir um estado de crueldade absoluta e totalitária, e entre os
«moderados», os sunitas, os xiitas, os sauditas, vê-se um Ocidente que às cegas
tudo ataca promovendo acordos dúbios, apoios a ditadores, expirando
hipocritamente de alívio perante o fracasso da «primavera árabe». Mas este
aparente desatino, serve às mil maravilhas os objetivos do Estado-Guerra o tal
da «Justiça Infinita» de que falava Bush. O anonimato niilista dos jovens que
se imolam e matam nas cidades europeias vêm mostrar igualmente um vazio de vida
que é difícil suportar e que só pela morte se redime. São as condições ideais
para a consolidação do fascismo pós-moderno de base eleitoral e da guerra
permanente contra tudo e todos. Voltando a Zizek e ao seu prefácio no «Pela Defesa
do Terror», este cita Saramago quando em 2008, salvo erro, defendeu levar ao
tribunal de Haia os responsáveis pelas guerras do Golfo. Segundo o filósofo,
àparte qualquer «exagero poético» de Saramago, esta proposta será de levar
muito a sério enquanto é tempo e para o futuro. Ou será por mero acaso que Bush
ainda não saiu dos EUA, depois dos mandados de captura internacionais de Garzón
a muitos dos seus adjuntos militares?
Guy Debord, esse, nos seus «Comentários à Sociedade do
Espetáculo» de 1988, prefere utilizar o termo para este mesmo fascismo
pós-moderno de Petit, a designação de «sociedade espetacular integrada» com o
seu cortejo de apropriação capitalista não só das mercadorias e das
matérias-primas, mas de toda a humanidade ela própria e do indivíduo encarado
como tal o que é a negação dos princípios iluministas que há muito deveriam ser
superados, até por uma esquerda estranhamente apática perante o niilismo. Cita
Debord, Tucídides, na sua «Guerra do Peloponeso» quando se operou uma tentaiva
de golpe de estado oligárquica, aliás vitoriosa: «nenhuma oposição se
manifestava entre o resto dos cidadãos, que temiam o número de conjurados. Logo
que algum ensaiava, apesar de tudo, contradizê-los, encontrava-se em seguida um
meio cómodo de eliminá-lo. Os assassinos não eram procurados e nenhuma
perseguição era iniciada contra aqueles de quem se suspeitava. O povo não
reagia e as gentes estavam de tal forma aterrorizadas que se consideravam
felizes, ainda que calado, por escapar às violências. (...) A cidade era
demasiado grande e eles não se conheciam o suficiente entre si para que lhes
fosse possível descobrir o que cada um era verdadeiramente. Nestas condições,
por indignado que se estivesse, não se podia confiar estas queixas a ninguém.»
Este livro (A Engrenagem do Terror – De Bagdade a Paris) que
o Le Monde Diplomatique organizou e que a Deriva teve o orgulho de editar, assim
como os outros antes deste, servirá certamente para não termos medo. Medo de
terrorismo de Estado, criando uma guerra ao Estado-Guerra, lutando contra os
fascismos embrionários, mas, sobretudo, não ter medo. A esquerda não deve ter
medo de falar, e ao fazê-lo, realizem-no sem tabús ideológicos e políticos
contribuindo para criar uma emancipação efetiva dentro da liberdade, de uma
vida que valha a pena ser vivida. Contrapor ao Terror a vida vivida na
solidariedade e na emancipação. Creio que o valor da «Engrenagem do Terror» é
ajudar-nos a munir dessas armas na verdade das coisas. O de declarar guerra à
guerra.
António Luís Catarino