segunda-feira, fevereiro 03, 2014

De «Suicidas»: Jack London, de Henrique Manuel Bento Fialho



JACK LONDON


Vou falar-te de excessos. Já estive à beira da morte. Pensando no assunto, estamos cada segundo das nossas vidas à beira da morte. A vida é um excesso, o meu nome é excessivo, eu acredito que não acredito em nada, a minha boca é excessiva. Vou contar-te do excesso. Vou contar-te de um corpo pendurado a seis passos do chão, a balouçar como se fosse um ponteiro de um relógio danificado, e o tempo a passar pelos músculos rasgados de tanta força fazerem para trazerem de novo à tona o corpo pendular. Vou contar-te da jóia negra que um dia comi sem sabê-la contaminada. Nunca fiz o teste, receei o resultado. Vou contar-te de uma coisa parecida com um corpo humano a saltar de um veículo em andamento, numa estrada atlântica ladeada de canaviais onde tantas vezes procurei esconder-me das luas cheias que me açoitavam as hormonas. Vou falar-te de uma orgia a céu aberto, com dois corpos rebolando-se sobre as brasas extintas de uma fogueira apagada, e de como cada um desses corpos ao rebolar-se daquela maneira deixou escrito a carvão, na pele que trazemos sobre a nossa própria pele, o quanto era importante activar todas as glândulas num único sentido: o do excesso que nos faz sentir vivos nem que seja por brevíssimos e esplendorosos e absolutamente únicos instantes. Vou falar-te de uma salada de maconha, respiração boca a boca em pleno deserto, com o mundo inteiro a transformar-se numa miragem. Quando morreres, que te prestem contas pelo que não fizeste. Que a vida te seja proveitosa no céu. A vida é um alvo ao alcance da mira excessiva, a vida é a bala em trânsito. Às vezes compro caixas de lua cheia e devoro-as num segundo, só para sentir o açúcar a embebedar-me o sal do sangue; sempre que bebo, bebo predispondo-me para a bebedeira com que um dia levantei ao ar um caixote do lixo com nome de mulher. Tinha um nome complexo. A revolução acabou de começar, mas é já a história a repetir-se. Isso mesmo, a revolução acabou de começar, mas é só a história a repetir-se. Toma lá um bafo, leva-o bem ao fundo dos pulmões, encolhe a respiração, explode de alegria e, faz-me esse favor, não lhe chames artificial. No fundo, é apenas a chama do riso a ser ateada. E nos meus pulmões o ar dos teus pulmões refazendo, como se diz, toda a perspectiva do mundo. Os meus olhos vêem-te por todo o lado sob todas as formas. E eu mudo-te o nome a cada instante. És igualzinha a um banho de sol em delírio, a uma guitarra distorcendo as ancas que dançam e pulam e giram e se abanam como se quisessem espanar do ar as poeiras que o vento traz. De onde traz o vento todas estas poeiras? Não quero saber. Já preparei a mochila, em breve seguirei por aí à procura de um rumo para os estilhaços espalhados pelo chão. Estou no ir. Há algo no ar que o vento traz, estou no ir. Todas as evidências enterradas, um passado inteiro atirado para a berma da estrada, estou no ir, uma ossada ganhando músculos, desabrochando, os nervos crescendo no corpo como uma flor na terra, sementes de pele rebentando sobre a carne viva, desnascer só pode ser isto, estar no ir, e eu estou a chover dentro de mim próprio para que alguma coisa nova nasça, estou a fecundar as terras do meu corpo para que alguma coisa nele brote, alguma coisa que se possa cultivar sem os cuidados exigidos das hortas lavradas, alguma coisa selvagem, um silvado carregado de amoras, um silvado excessivo onde alguém um dia mergulhará cada um dos seus anseios para de lá sair com o corpo cravado de espinhos, estou a flectir as pálpebras, a revirar os olhos para melhor observar o que dentro me vai impedindo de estar em sintonia com o que está fora, estou no ir. Para os teus banhos de sol, uma das minhas caixas de lua cheia. Podes ficar com a poesia.