V
Vagueio indefinidamente
nas ruas sossegadas, ando até cansar o corpo em acordo com a alma, dói-me até aquele
extremo da dor conhecida que tem um gozo em sentir-se, uma compaixão materna
por si mesma, que é musicada e indefinível.
Bernardo Soares, Livro do Desassossego
A produção das coisas do mundo fascina-o e oprime-o.
Acorda querendo ouvir debaixo de si as grandes rodas da maquinaria, apesar de
não ser mais que um operário a fazer render o material que lhe dão para as mãos
no isolamento do seu posto. O ruído das máquinas embala-o ao longo das horas,
amolecendo-as, oferecendo o prazer de as esquecer, o deleite de não guardar
mais do que o seu movimento infernal. Porém, às cinco da tarde sai da fábrica e
é deixado a sós com as suas suposições de vida que depressa se traduzem na
necessidade de dar um sentido à constância do aperto frio no peito. E o extravasar
da alegria ao longo destes anos de juventude é um longo júbilo tosco, gáudio
que brota e se encaminha para a morte. Logo no primeiro dia, acabado de chegar
à cidade fabril, ao mesmo tempo que acabando de encontrar o cenário ideal para
os seus passeios demasiado desatentos ao próprio cenário, soube que ali lhe
seria dado espaço para dar vazão aos seus dons subterrâneos para a alegria.
Quantas vezes, desde então, ele passa entre os carros repetindo o roteiro desse
primeiro dia, quando descendo do miradouro, de onde nada observou, à praça, em
cuja estátua ao centro não viu mais que um monólito, percebeu que era por ali
que poderia andar, sozinho, até ao soçobro. Por vezes, para aplacar a
indispensabilidade do prazer, corre por atalhos afastados que o levam ao teatro
ver uma peça que põe em cena, com toda a parafernália, alguma das suas
obsessões. É porém certo que quando regressa, a cena derradeira da peça é-lhe
já indiferente e sente apenas as influências do clima no corpo enquanto avança
nas ruas, indefinidamente, sem que nenhum obstáculo súbito embargue os passos
que se queriam deter em alguma circunstância.