Dar ao público o que ele não quer, mas esperar ser
sustentado: temos aí uma estranha pretensão, contudo não invulgar, sobretudo
entre os pintores.
Robert Louis Stevenson
Quem se detenha no título deste ensaio, não deixará de se
espantar. Primeiro por nele ser admitida uma profissão das letras, depois por
pressupor-se nessa profissão uma moralidade. O ensaio data de 1881, os tempos
eram outros, mas Robert Louis Stevenson (1850-1894) mantém-se actual. Ainda que
o conceito de profissão das letras nos pareça vago, sobretudo num país como o
nosso, ele faz sentido onde as letras podem ser tomadas com a seriedade de
outros negócios. A urgência de uma moralidade na profissão, que já então
suscitava debate, é outra história. Basta ler A Informação, de Martin Amis,
para se compreender que também neste negócio, o das letras, a moralidade tem
tectos falsos e fronteiras relativas. Mas essa é uma realidade que, apesar de
tudo, está distante da nossa, pois por cá o amadorismo e a diletância, no pior
e no melhor dos sentidos, vão como que garantindo um certo desprendimento que
mantém o negócio em território paralelo. Perdem os autores, explorados até ao
tutano das palavras, ganham, quando ganham, os editores, as distribuidoras, os
retalhistas (que já nem se resumem a esse sôfrego espaço das livrarias, pois
por todo o lado se vêem livros à venda como outrora se viram tremoços). O
cenário é apenas similar ao experienciado por Stevenson, pese embora o facto de
no que à porcaria diz respeito haver sempre pormenores que nunca mudam. E esses
pormenores fazem a diferença. Disto não pode ser abstraída a natureza humana,
retratada pelo autor, na sua essência, nessa magistral efabulação intitulada
The Strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde. A bipolaridade da personagem
tipifica o pensamento de Stevenson nos mais variados temas, não sendo excepção
os três ensaios coligidos neste pequeno volume da colecção Pulsar (Deriva,
Dezembro de 2012). No primeiro, que dá título ao volume, subentende-se o
esforço colocado na defesa de uma literatura rigorosa que não se faça depender,
exclusivamente, das ambições lucrativas. Entenda-se aqui o lucro em termos
meramente materiais, pois outros há que ultrapassam a configuração salarial.
Passam por valores igualmente viciantes como os do reconhecimento, da fama, da
promoção académica, da afirmação pessoal, da pura vaidade. Isto torna
actualíssimo o principal desejo do autor de An Inland Voyage: «Melhor fora que
os nossos templos serenos estivessem vazios do que cheios de padres vendilhões
e embusteiros» (p. 17). A expressão “templos serenos” é denotativa do lugar em
que Stevenson colocava a sua actividade, olhando para a literatura de um modo
que as práticas actuais não se esforçam para desmentir. Stevenson acreditava na
função educativa das letras, encarava-o como uma missão, preocupando-se pois em
estabelecer uma separação clara entre uma literatura preocupada em instruir e
outra meramente ocupada em agradar. Não obstante, admitirá, com laivos de
ironia: o fim de toda a arte é agradar e o primeiro dever de um indivíduo é
ganhar o seu sustento (cf. p. 40). Note-se que a crítica do entretenimento não
deixa de ser curiosa num autor cujos méritos, muitas vezes, não foram elevados
a outros patamares. Talvez existisse nesta postura uma necessidade de
afirmação, algo que o leva a concluir ser intelectual o primeiro dever de
qualquer um que queira escrever. No entanto, essa necessidade é colocada de
lado quando critica a parcialidade do jornalismo, reivindica a busca da
verdade, preocupa-se em atribuir às letras uma utilidade que será sempre mal
paga. E conclui: «Na literatura como na conduta, nunca podemos esperar proceder
com correcção exacta. Tudo o que podemos fazer é procurar a máxima certeza; e
para isso há apenas uma regra. Nada que possa ser feito devagar deve ser feito
à pressa» (p. 28). É esta a ferida que um texto escrito há 130 anos melhor
abre, pois exige-nos que pensemos a nossa relação com o tempo e como a mesma
determina tudo o que fazemos, mesmo quando o fazemos contra o tempo,
indiferentes à utilidade dos ofícios pagos ou à atribuição de um salário.
Talvez o acto de escrever, que na Carta a um Jovem Cavalheiro que se Propõe
Enveredar pela Carreira das Artes é separado das «profissões rotineiras» e
colado à «vocação», se tenha transformado numa espécie de ritual com direito a
fazer parte de uma comunidade restrita. O elogio, os encómios, a popularidade
(sempre relativa), pagam a jorna. Evocada, ontem como hoje, a cegueira da
«grande massa do público», pouco mais nos resta. Robert Louis Stevenson não
teve que se queixar senão de uns desgraçados pulmões, o que lhe valeu repouso
eterno nas ilhas do Pacífico. Do mal, o menos. Sem ceder à mediocridade, foi
popular. Nele, o idealismo encontrou o realismo e este assentou no regaço
daquele. Mesmo tendo em conta uns parcos 44 anos de vida, não foi extensa a sua
produção. Velejar, afinal, era mais útil do que escrever.
Henrique Manuel Bento Fialho,