Sobre os tempos que vivemos, João Camargo escreveu no Blogue Que Se Lixe a Troika:
«São tempos horríveis. Feios, sujos, mentirosos.
Mesmo as pessoas habituadas a engolir sapos já não conseguem mais. A mentira
ocupou o discurso público. Mentiras simples, muito simples e curtas ocuparam o
centro dos debates: «o estado é insustentável»; «devemos abdicar da nossa
soberania»; «vivemos acima das nossas possibilidades»; «devemos ter a saúde que
conseguirmos pagar»; «há professores a mais»; «a reforma do estado vai
melhorá-lo». Quem as profere, dia após dia, de canal em canal, de sintonia em
sintonia, de cartaz em cartaz é ignorante ou está de má-fé. Haverá alguns
ignorantes. A maioria sabe bem o que faz e para onde quer levar-nos. A
concretização que decorre dessas mentiras simples é a destruição das vidas de
milhões, aqui em Portugal, como em toda a Europa.
São tempos horríveis, em que pessoas com mais de
80 anos são despejadas de suas casas, porque as rendas tinham que ser
modernizadas. Em que os estudantes têm de deixar as escolas por não terem
dinheiro para pagar a sua educação. Em que, em pleno inverno, bairros são
demolidos e as pessoas atiradas à rua, para «embelezar» as cidades. Em que se
corta o número de camas disponíveis nos hospitais, apesar de já faltar
capacidade de atender doentes. Em que se aumenta o tamanho das turmas nas
escolas para «rentabilizar» os poucos professores ainda disponíveis. Em que os
medicamentos são racionados e os doentes não podem tratar-se. Em que se salvam
os bancos para que estes ponham a economia a funcionar, o que não fazem. Em que
pais se suicidam com as suas crianças por estarem desempregados, sem apoios e
na iminência de perder as casas. Em que nas noites das cidades centenas de
pessoas se amontoam pelo chão, contando apenas com o calor do corpo ao lado
para aguentar o frio. Em que se registam ilegalmente imagens das manifestações.
Em que se identificam e detêm de forma avulsa pessoas nas ruas. Em que mais de
dois terços da população não conseguem pagar as suas contas todos os meses. Em
que mais de metade das pessoas que trabalham está desempregada ou é precária.
São os tempos da mentira universal, da brutalidade universal e da ascensão de
um ódio profundo à comunidade e à sociedade, concretizado pelas troikas
internacionais e pelas suas representações permanentes nos países, os governos
da austeridade. Não há já dúvida de que o que querem é um novo regime. Um
regime de trevas, injustiça e desigualdade. Um regime de exploração, de
espoliação e de regressão. O regime da austeridade.
Vivemos, portanto, numa nova época terrível da
longa história humana. Mas acreditamos, como Galeano, que este mundo podre,
sujo e mentiroso está grávido de outro mundo. E acreditamos nesse outro mundo.
Temos de acreditar. Ele não é só possível. Ele está ao alcance das nossas mãos.
Está ao alcance da nossa capacidade de articulação, de organização, de
empreendermos a tarefa mais importante das nossas vidas: a de resgatarmos um
futuro para nós e para a nossa sociedade.
Não pedimos favores à troika ou ao governo. Não
lhes pedimos clemência ou piedade, esmola ou razoabilidade. Sabemos não ser
essa a sua natureza e não ser essa a relação que um movimento de resistência
tem com um movimento de ocupação e saque. Sabemos estar do lado certo pois o
mundo que nos propõem, o da miséria e da injustiça para a maioria, com o
privilégio e o luxo para uma minoria, é e será sempre errado. Já demos passos
sérios para deixar essa situação: já derrubámos monarquia e aristocracia, já
abolimos escravidão e servidão, já espezinhámos ditaduras e tornámos a
liberdade e a democracia a norma. A história não pode voltar para trás. Não a
deixaremos voltar para trás. Temos de continuar a evoluir para sermos mais,
melhores, justos, solidários e humanos. Eles são o passado, a paz podre das
cortes e dos tribunais inquisitórios, a medicina das sangrias e a censura da
liberdade. Lutamos e lutaremos contra este inimigo terrível, de mil caras e mil
mentiras. Não lhe vamos dar paz, não vamos aceitar voltar atrás, não vamos
vergar ou contemporizar. Não vamos negociar uma paz podre a pagar pelos nossos
filhos e netos, por nós mesmos, que trairia a memória daqueles que no passado
lutaram para que chegássemos aqui. Vamos atacar estes tempos horríveis com o
futuro, a justiça e a democracia no peito e na cabeça.
Uma vez mais nos lançamos nesta luta. Cada vez
somos mais e mais organizados. Levamos nas nossas vozes e nas nossas bandeiras
o espírito da nossa irreverência, do nosso inconformismo e da nossa coragem.
Que se oiça em todo o lado, em todas as ruas de todas as cidades: «O POVO É
QUEM MAIS ORDENA». E então será ele mesmo a ordenar.»
João Camargo