domingo, abril 03, 2011

Nos 35 ANOS DO HOMICÍDIO DE MAXIMINO SOUSA, a.k.a. Padre Max

Nos 35 ANOS DO HOMICÍDIO DE  MAXIMINO SOUSA, a.k.a. Padre Max
Padre Max, O Pecador, por Miguel Oliveira, in Aqui na Terra.


O pecador
A 2 de Abril de 1976 a noite estava escura, a iluminação pública desligada e chovia.
Na Casa da Cultura da Cumieira, a sete quilómetros de Vila Real, o padre Maximino de Sousa ensinava Português e Francês a trabalhadores-estudantes. Não era ainda meia-noite quando perguntou as horas.
Doía-lhe a garganta, estava exausto e febril. «Já dei muitas aulas hoje, vamos embora.»
Antes de se dirigir para o seu Simca 1000, de cor amarela, estacionado junto ao fontanário, deteve-se à conversa com alunos a propósito de uns emblemas da UDP que lhes prometera. Ele seria, dali a semanas, o candidato daquele partido de esquerda nas primeiras eleições livres. E era influente entre os jovens. Já no carro, cuja porta direita de trás não trancava, o padre Max – assim era chamado – buzinou para que Carlos, director da Casa da Cultura, se apressasse. À boleia, ia também Maria de Lurdes, de 18 anos, estudante e sua protegida.
O automóvel arrancou.
Carlos esticou as pernas, batendo com os pés num volume debaixo do banco de Maria de Lurdes. «O que é isto que vai aqui?», perguntou. «Sei lá», respondeu o padre. Duzentos metros à frente, parou em casa do amigo para recolher um dos dois garrafões de vinho de cinco litros que lá havia deixado. À saída do carro, Carlos viu uma luva de cabedal de cor castanha, forrada a lã, esquecida no assento. «De quem é esta luva?», questionou-se, intrigado. «Essa luva é tua, pá, não me gozes», atirou-lhe Max, apressado.
Lurdes disse que lhe parecia de rapariga. «Não é, olhem para esta manápula», observou o padre, pegando-lhe. Carlos foi buscar o garrafão enquanto o cunhado ficou breves minutos à conversa com o sacerdote. Despediram-se.
Carlos entrava em casa quando o estrondo se deu e o chão tremeu. Um clarão enorme iluminava o breu.
«Mataram o padre Max!», gritava a irmã.
Lurdes jazia no meio da estrada, ao quilómetro 71.
Ainda disse «que desgraça!» ou «socorre-me!», algo assim.
Max estava caído junto da valeta, à esquerda.
«Ó pá, que desgraça!», disse, a custo.
O Simca era uma amostra.
Ela foi transportada ao hospital num jeep que passava. Ele seguiu no carro do cunhado de Carlos. No caminho, disse que lhe faltava o ar.
Maria de Lurdes chegou já sem vida ao hospital. Vestia três camisolas leves de várias cores.
Max entrou com grande dificuldade em falar.
Perguntaram-lhe o que se passara.
«Colocaram-me uma bomba no carro e agora está a arder, mas não faz mal. É esta a democracia portuguesa.»
De seguida, entrou em coma. Faleceu às seis horas e vinte minutos do dia 3 de Abril de 1976. Tinha 32 anos e dizia que não chegaria à idade de Cristo.
Nascido na Choupica, Ribeira de Pena, um dos filhos de pais emigrados em França e fugidos aos nazis, Maximino passou parte da infância e adolescência em Almendra, no concelho duriense de Foz Côa. Ali, as mulheres lamentavam que um rapaz «tão bonito» se inclinasse para o sacerdócio.
Ele, porém, não iria ser apenas mais um.  O «baptismo revolucionário» deu-se em França, nos tempos sobressaltados de 1968. Trabalhou na Acção Católica em 1971 e foi professor em Lisboa e Setúbal.
Optou depois por Vila Real por sentir que aí morava a sua vocação e destino. Para o bem e para o mal, não se enganou.
Max foi para a capital transmontana ocupar a sala do primeiro andar na moradia da travessa de D. Dinis, número dois, alugada por mil escudos aos pais de Maria de Lurdes, também emigrados em França.
A jovem vivia com a avó e a irmã. E o padre assumiu o papel de encarregado de educação das raparigas.
Maria das Dores, 72 anos, a proprietária da casa, lembra-se de um padre inteligente e humilde: «Dava tudo o que tinha sem nada pedir em troca.»
Fez-lhe uma coberta e ainda pregou um fecho numas calças velhas. Era um homem além do seu tempo. «Dizia que a virgindade não tinha valor nenhum. E tinha razão.»
O meio era conservador e tradicional.  Max era de esquerda, vestia calças de ganga, agitava consciências.
Dava aulas no liceu e na Escola Industrial e Comercial. Mobilizava lutas de estudantes. Ensinou adultos a ler e a escrever, apoiou os operários nas contestações fabris.  Os jovens seguiam-no, os pais temiam-no.
Os amigos admiravam-lhe as qualidades morais e profissionais.  Famílias abastadas da terra, militantes da direita radical e a maioria dos sacerdotes da região olhavam Max como dispersor do rebanho, incapaz de seguir «uma linha de pudor que estivesse de acordo com os hábitos da terra.»
Desde 1974 que os párocos reclamavam medidas, sob pena do Bispo ser «severamente criticado» e vir «a sofrer amarguras.»
Dom António Cardoso Cunha esticou a corda até onde pôde. «Tenho sido inalteravelmente seu amigo, não obstante os grandes dissabores que (…) tenho experimentado nestes dois últimos anos, devido à sua conduta e actividades de natureza política. Sinto-me no dever de dar uma explicação pública a toda esta gente», escreveu o bispo de Vila Real num bilhete enviado ao «caro Maximino», a 15 de Março de 1976.
O padre era, por esta altura, candidato a deputado nas listas da UDP. E ficou impedido de exercer o ministério. O sacerdote Manuel Morais era dos poucos que lhe tinha «estima e consideração.» À esquerda, militantes do MRPP acusavam-no de traição.
O temperamento brincalhão de Max não era imune a aflições.
Foi ameaçado e puxado pelos colarinhos em reuniões de associações de pais e do clero local. Um Morris vermelho e um Alfa Romeo verde rondavam-no.  Famílias influentes e grupos de rufias da região tiravam-lhe as medidas.  Cartas ameaçadoras, anónimas, eram frequentes. «O seu lugar não é junto dos estudantes, mas sim em Lisboa junto das prostitutas», escrevia-se. Nos muros do liceu, pichagens prometiam-lhe a morte.
À noite, jovens do CDS entretinham-se a insultá-lo à porta de casa e atiravam-lhe garrafas de vinho, vazias e cheias.  Soube-se depois que várias das cartas intimidatórias, sem nome, foram dactilografadas numa máquina de escrever Lettera 22 Olivetti encontrada na sede do CDS de Vila Real.  Max passou a recear a própria sombra.  Inspeccionava o automóvel antes de entrar, era cuidadoso com o fecho das portas, mas a direita, de trás, não teve emenda nem na oficina.  Por duas vezes lhe furaram os pneus, puseram bilhetes no pára-brisas e paus de fósforos na fechadura do carro.  Ramiro Moreira, operacional da rede bombista de extrema-direita, fez-se passar por sindicalista para o vigiar no início de 1976.
Ele, na brincadeira, dizia que qualquer dia lhe punham uma bomba. «Não desisto e, se morrer, é por uma causa justa», ouviram-no, mais a sério.
Queixava-se pouco. Mas nos dias que antecederam a morte, viram-no triste e apreensivo. Ao final da tarde do dia 2 de Abril de 1976, a amiga Maria Manuela disse-lhe à porta do liceu que não ia com ele, nessa noite, à Cumieira.
«Então não te vejo mais.»
Percebendo nela sorriso assustado, corrigiu: «Não te vejo mais…hoje.»  Esteve depois no Governo Civil num encontro de todos os partidos para discutir as eleições desse mesmo mês.  Aí, lamentou a reacção que vinha sentindo nos meios rurais e pediu compreensão democrática. A reunião foi cordata.
Antes das 22 horas deu boleia a um rapaz do seu curso nocturno que ia tratar de uma queimadura na perna direita ao hospital.
Seguiu depois para a Cumieira.
Entregues os garrafões de vinho vazios em casa de Carlos, só parou na Casa da Cultura. A bomba foi colocada no seu carro enquanto dava a última aula de um dia esgotante.  Na estrada, depois da explosão, corpo prostrado no asfalto, só pediu:
«Vejam como me levam.»
Era o último fôlego de quem, qual ironia, havia ajudado os alunos a ensaiar a peça Mortos sem Sepultura, de Sartre, escrita trinta anos antes.
Um texto onde a personagem Canoris é um homem de acção, pronto a enfrentar a morte em nome da liberdade.
Ao funeral, a 5 de Abril, assistiram vinte mil pessoas. «Coisa nunca vista», diz quem lá esteve.
A missa foi celebrada na presença de quarenta sacerdotes, vindos de todo o País. Os párocos de Vila Real recusaram celebrar a missa de 30º dia.
Quando a Polícia Judiciária do Porto entrou em campo, logo mostrou ao que ia: crime passional.  A tese, mirabolante, apontava Carlos, amigo de Max e Maria de Lurdes, como autor de um crime e de uma bomba…em forma de garrafão de vinho.
Carlos esteve confessadamente apaixonado por Maria de Lurdes, mas ela pediu tempo.
A jovem estaria grávida de três meses quando morreu e o padre Maximino seria, para a Judiciária, o principal motivo de ciúme de Carlos.
Insultado e enxovalhado durante um inquérito, o amigo de Max ouviria, da boca de um agente que procurava intimidá-lo, frase lapidar: «Uma das desgraças que trouxe o 25 de Abril foi acabar com a PIDE.»
A PJ investiu o que tinha e não tinha na tese passional.
No primeiro relatório, escreveu que o padre «dava política de modo a cativar os alunos segundo a ideologia da UDP», era defensor «do chamado amor livre» e vivia «maritalmente» com a Maria de Lurdes. «Por tudo isto e o mais que não foi possível averiguar, o padre Maximino não gozava de boa reputação», concluía-se.
Nesta altura, na PJ do Porto, os agentes «do antigamente» adaptavam-se o melhor que podiam à nova situação. «Mas puseram a ideologia a comandar as investigações», conta quem viveu esses tempos por dentro.
Não espantou, por isso, a displicência na salvaguarda de elementos de prova.  A chapa exterior de uma das portas do carro só a encontraram no socalco de uma vinha mais de dois meses depois do atentado.
E passou idêntico período até que recolhessem pedaços do tapete do veículo e examinados os vestígios da bomba.  Só nos anos 80, quando foi necessário voltar à estaca zero, o caso do padre Max entrou em trilhos sólidos: o crime político.   A investigação do assassínio, por desconhecidos, do industrial Joaquim Ferreira Torres, em Agosto de 1979, iluminou a noite da Cumieira. O Sãobentogate, julgamento que «limpou» a PJ do Porto da corrupção interna mais endémica, fez o resto, no início da década de 80.
Torres era o conhecido financiador do MDLP (Movimento Democrático para a Libertação de Portugal), presidido pelo general Spínola e liderado por Alpoim Calvão. Tinha com ligações a ex-PIDES, radicais de direita e aos sectores mais conservadores da Igreja e pôs Portugal a ferro e fogo entre 1975 e 1976. Segundo um dos seus quadros, o movimento custava 15 mil euros por mês, três mil contos à época.
Bombas e incêndios em alvos de esquerda, com algumas vítimas mortais, foi o rasto deixado pelo terrorismo de direita.
O papel de Torres no planeamento e financiamento da operação da Cumieira provou-se no Tribunal Judicial de Vila Real. E contou com a ajuda de gente ligada ao MDLP. Ainda que, na época, alguns elementos pudessem já andar em roda livre, quais prestadores de serviço à conta de bom dinheiro. O receio de Torres voltar a ser preso por causa da rede bombista fê-lo ameaçar, à boca cheia, que abriria o livro sobre as cumplicidades e negócios feitos à sombra do MDLP. Não era «bluff» e foi o seu fim.
O industrial havia sido, logo após o 25 de Abril, fiel depositário de fortunas e valores de figuras influentes e poderosas fugidas no estrangeiro. Uma época em que o MDLP contou com fiéis amigos na PJ do Porto. «Protegia-se gente do fascismo e camuflava-se o envio de importantes somas de dinheiro para fora do País», segundo recordam fontes dessas investigações. O processo do padre Max foi dos mais viajados da Justiça portuguesa. E dos mais longos. Teve de tudo. Até agentes da PJ apanhados nas escutas a sabotar a actividade de colegas. Já para não falar da escassez de meios, da falta de incentivo à investigação e das solicitações constantes para que se desistisse de vasculhar o passado.  A sentença de um processo com 15 volumes e mais de quatro mil páginas foi proferida em 1999, 23 anos após o crime e uma salsada de avanços e recuos. «Condenado» o MDLP enquanto organização que planeou e financiou o atentado, foram absolvidos os alegados executantes. Falta de provas, justificou-se.
O facto do crime ter sido julgado – com desfile de chefes e colaboracionistas da rede bombista incluídos – deve-se, em boa parte, à persistência de dois investigadores da PJ – Artur Pereira, nos anos 80, e Victor Alexandre, nos anos 90 – ao então procurador Paulo Sá e a Mário Brochado Coelho, advogado das vítimas. «O modo como foram investigados e julgados os processos relativos a “crimes de direita” foi mais benévolo. Encobriu-se responsabilidades e responsáveis deliberadamente. O caso do padre Max e de Maria de Lurdes foi um paradigma de obstrução sistemática à descoberta da verdade. E estivemos muito perto de sabê-la toda», diz o causídico.
Se não a sabemos, explica quem conheceu o processo, «é porque há coisas do presente que ainda assentam neste passado. Olhe-se para a matriz do regime, para a gente que beneficiou do que se fez naquele tempo e tirem-se as conclusões.»
Um dos altos quadros do MDLP resumiu, um dia, a situação a um dos investigadores: «Temos de dizer aos avós daqueles que estão no poder para pôr os meninos nos eixos, a ver se eles se portam bem. Senão isto ainda acaba tudo outra vez à estalada.»
Hoje, na Cumieira, quase não há vestígios desse tempo.
A Casa da Cultura será transformada no novo edifício da Junta de Freguesia. E ao quilómetro 71, só uns dizeres desbotados inscritos numa paragem de autocarro velha e enferrujada insistem em preservar a memória e a verdade: «Padre Max, assassinos à solta.»  No cemitério de Santa Iria, o jazigo de Maria de Lurdes é a cara do desleixo.  A campa de Maximino de Sousa é a 1240, a dois passos. As flores são de plástico, mas o craveiro ao fundo da laje preta tem cravos a florir, em rebeldia. Só uma funcionária da Segurança Social de Vila Real lá pára, às vezes. Todos os anos, Maria Augusta, feliz zeladora do cemitério a meias com o marido, recebe chamadas do estrangeiro, emigrantes pedindo que enfeite a última morada dos familiares. Pelo padre Max e Maria de Lurdes, ninguém telefona. Para eles, já não há velas nem flores.
Miguel Carvalho, in Aqui na Terra, 9-16.