O que é terra? – uma das perguntas subjacentes ao texto dramático de Pedro Eiras, Um Punhado de Terra (2009), monólogo sobre a escravatura imperialista portuguesa na época dos descobrimentos. O que se entende por terra? É nascimento, é pátria, é vida, é morte? Ou tudo isto ou nada disto? O que é legítimo fazer em nome da terra, o que é legítimo fazer para conquistar terra?
Um Punhado de Terra é um pequeno monólogo onde um escravo africano conta, em analepse, o caminho que o fez chegar à «terra estrangeira» lusitana. Pela sua boca assistimos à transformação do homem que era uno com a natureza – «era só um com as pedras e fontes» (p. 7) – num destroço «vendid[o] como gado» (p. 24). É talvez esta consciência da desumanização que mais ataca o leitor: quando se lê «Era um homem» (p. 7), não como quem diz que antes se foi um homem diferente, mas dizendo que se foi um homem e que, neste momento, se é outra coisa qualquer, despido da humanidade, sem hipótese de retorno. Esta asserção simples, quase inocente, logo no início da peça, coloca o leitor perante o tom trágico que a vai percorrer até ao fim. Estamos frente a um homem a quem lhe foi roubada a terra, um escravo, um não-homem.
Quando os conquistadores portugueses invadem o mundo que lhes era desconhecido, conta-nos o escravo, assiste-se a um ataque mortal à própria terra – «Olhei a praia/ cheia de sangue ondas do mar misturadas com sangue/ espuma das ondas com feridas de sangue» (p. 11) – que era uma só com os homens dizimados num primitivo holocausto – «e nunca os tínhamos visto nunca lhes tínhamos feito mal». A subjectivação do adjectivo selvagem torna-se clara na expressão do escravo: para este selvagem domesticado – assim o entendiam os conquistadores – eram os recém-chegados que «tão feios/ Traziam nas caras a fúria selvagem» (p. 10). A terra, sempre presente ao longo de todo o texto, fica para sempre manchada de sangue. Os sobreviventes são levados para a pátria, uma outra terra, para serem devidamente desumanizados.
O escravo coxeia quando entra em palco, isso nos diz a primeira das duas únicas didascálias de toda a peça. A outra, no final do texto, dá-nos a última utilização de um punhado de terra e é a resposta à pergunta o que é terra. Colocar um monólogo tão profundamente doloroso quanto este cercado por dois pedaços de texto que lhe são exteriores é também uma escravidão: é uma ordem de prisão que o dramaturgo dá aos futuros encenadores – está tudo na palavra do não-homem escravizado. Todavia, ao mesmo tempo, é a total liberdade para aquele que leva o texto ao palco: não dizer quase nada é o mesmo que permitir quase tudo. A nudez de texto técnico, que mais não é que a nudez de humanidade do escravo, é uma perigosa faca de dois gumes que aponta também para o público leitor – não se sabe da revolta ou aceitação do homem, do desespero ou da esperança, da raiva ou da simples conformidade. Não sabemos, mas imaginamos que o escravo nos olha nos olhos quando leva, lentamente, um punhado de terra à boca, «comendo terra até morrer» (p. 27).
A terra é, talvez, o mais complexo signo deste monólogo e, por isso, o mais interessante. A terra, que vista de longe parece una mas que na mão se descobre composta por milhares de partículas diferentes, que pode ser ferida, morta e tomada como um homem pode, que pode ser desumanizada e escravizada, como um homem pode, que mata como um homem mata. A terra é, afinal, o homem, o povo, e todos os povos.
Escusando o fácil – e aborrecido – tom grandíloquo que grande parte das representações da época dos descobrimentos assume, Pedro Eiras produziu um texto de inegável valor, não só dramático, mas também lírico. Sem recorrer a grandes artifícios de linguagem (que pareceriam estranhos numa personagem que, muitas vezes, por não ser nativo, não mantém a correcção sintáctica) atingem-se, por vezes, imagens de um sublime raro e aterrador: o escravo é capaz de ver «um barco/ maior que montanhas» que «enchia o céu como nuvem de trovões» (p. 9).
Sem dúvida que a escravatura e as conquistas, descritas como aqui o são, tornam-se incómodas, principalmente para aqueles que cresceram a ouvir falar na glória dos descobrimentos e que, a partir dela, construíram uma imagem de orgulho nacional. O que este texto nos recorda é que Portugal, o país que deu novos mundos ao mundo, foi também o país que dizimou e escravizou milhões de homens livres. A literatura não deve nunca ser reconfortante, antes o revólver apontado à cabeça num jogo de roleta russa. Um Punhado de Terra é a faca que corta o tendão e deixa o leitor a coxear, incapaz de fugir do passado sangrento dos heróis do mar.
Tiago Sousa Garcia, Fevereiro de 2010 Rascunho.Net
Quando os conquistadores portugueses invadem o mundo que lhes era desconhecido, conta-nos o escravo, assiste-se a um ataque mortal à própria terra – «Olhei a praia/ cheia de sangue ondas do mar misturadas com sangue/ espuma das ondas com feridas de sangue» (p. 11) – que era uma só com os homens dizimados num primitivo holocausto – «e nunca os tínhamos visto nunca lhes tínhamos feito mal». A subjectivação do adjectivo selvagem torna-se clara na expressão do escravo: para este selvagem domesticado – assim o entendiam os conquistadores – eram os recém-chegados que «tão feios/ Traziam nas caras a fúria selvagem» (p. 10). A terra, sempre presente ao longo de todo o texto, fica para sempre manchada de sangue. Os sobreviventes são levados para a pátria, uma outra terra, para serem devidamente desumanizados.
O escravo coxeia quando entra em palco, isso nos diz a primeira das duas únicas didascálias de toda a peça. A outra, no final do texto, dá-nos a última utilização de um punhado de terra e é a resposta à pergunta o que é terra. Colocar um monólogo tão profundamente doloroso quanto este cercado por dois pedaços de texto que lhe são exteriores é também uma escravidão: é uma ordem de prisão que o dramaturgo dá aos futuros encenadores – está tudo na palavra do não-homem escravizado. Todavia, ao mesmo tempo, é a total liberdade para aquele que leva o texto ao palco: não dizer quase nada é o mesmo que permitir quase tudo. A nudez de texto técnico, que mais não é que a nudez de humanidade do escravo, é uma perigosa faca de dois gumes que aponta também para o público leitor – não se sabe da revolta ou aceitação do homem, do desespero ou da esperança, da raiva ou da simples conformidade. Não sabemos, mas imaginamos que o escravo nos olha nos olhos quando leva, lentamente, um punhado de terra à boca, «comendo terra até morrer» (p. 27).
A terra é, talvez, o mais complexo signo deste monólogo e, por isso, o mais interessante. A terra, que vista de longe parece una mas que na mão se descobre composta por milhares de partículas diferentes, que pode ser ferida, morta e tomada como um homem pode, que pode ser desumanizada e escravizada, como um homem pode, que mata como um homem mata. A terra é, afinal, o homem, o povo, e todos os povos.
Escusando o fácil – e aborrecido – tom grandíloquo que grande parte das representações da época dos descobrimentos assume, Pedro Eiras produziu um texto de inegável valor, não só dramático, mas também lírico. Sem recorrer a grandes artifícios de linguagem (que pareceriam estranhos numa personagem que, muitas vezes, por não ser nativo, não mantém a correcção sintáctica) atingem-se, por vezes, imagens de um sublime raro e aterrador: o escravo é capaz de ver «um barco/ maior que montanhas» que «enchia o céu como nuvem de trovões» (p. 9).
Sem dúvida que a escravatura e as conquistas, descritas como aqui o são, tornam-se incómodas, principalmente para aqueles que cresceram a ouvir falar na glória dos descobrimentos e que, a partir dela, construíram uma imagem de orgulho nacional. O que este texto nos recorda é que Portugal, o país que deu novos mundos ao mundo, foi também o país que dizimou e escravizou milhões de homens livres. A literatura não deve nunca ser reconfortante, antes o revólver apontado à cabeça num jogo de roleta russa. Um Punhado de Terra é a faca que corta o tendão e deixa o leitor a coxear, incapaz de fugir do passado sangrento dos heróis do mar.
Tiago Sousa Garcia, Fevereiro de 2010 Rascunho.Net