Haiti, setembro de 2009
Tenho evitado falar do Haiti. Não porque haja muita coisa para dizer a não ser dar conta da revolta da impotência perante a brutalidade e o horror de um desastre natural como foi o terramoto. O terror associado a este país já vem detrás. Lembro-me, ainda antes do 25 de Abril, de ouvir descritas por associações de defesa dos direitos humanos estrangeiras as torturas bárbaras dos Tonton Macoutes sobre a oposição haitiana aos Papa e Baby Doc e sobre a população em geral. Esta morria literalmente à fome sem que se mexesse uma palha, sequer, em seu favor. Tal como o modo como os EUA tratava deste seu vizinho caribenho e como nos explicam as páginas de Graham Greene. Os golpes de estado haitianos multiplicavam-se como cartadas de jogos de poker baratos. E com o seu correspondente cortejo de sangue.
Mas, se não ouso falar do terramoto do Haiti, porque recuso dar voz à vulgaridade e à multiplicação barata das emoções via internet e cadeias de comunicação, não posso calar a minha desconfiança perante as «informações» que nos chegam (de lá?). Durante três dias vimos os «directos» da RTP para o estúdio ao lado, com Márcia Rodrigues a descrever as mensagens do twitter, do facebook, do youtube e de bloggers, sem que houvesse qualquer confirmação de identidade de quem se consultava. O mesmo para as televisões privadas pelas quais me marimbo. Não lhes pago nada, pelo menos directamente.
Mais, nunca vi uma questão colocada ao modo como estava a ser organizada a ajuda humanitária que, ao que sabemos, era conduzida no terreno pelos EUA, com um autêntico exército no aeroporto. Mas a segurança faltava (?), as ajudas não eram distribuídas e as coisas básicas não chegavam à população que, entretanto, se revoltava empilhando cadáveres em protesto nas ruas. Que segurança era esta? Porque nunca se falava em retroescavadoras? Por que razão, um país como os EUA que não hesita em invadir o Iraque e o Afeganistão a dezenas de milhar de quilómetros dali, teme a segurança de uma pequena ilha? E as imagens repetidas imensas vezes nos dias que se seguiram pelas mesmas agências que as vendem às mesmas cadeias de televisão? Já para não falar do espectáculo obsceno da TV Globo que entrevista um soldado brasileiro que, por sua vez, entrevista uma mulher quase emparedada nos escombros. E que nós seguimos, alarvemente.
A ajuda tenderá a organizar-se. Irá chegar e com gente que sabe o que faz, embora cheguem sempre em último lugar, não vá o staff político perder o controlo da situação. Mas tenho todas as razões para crer que não há meios que cheguem para esta catástrofe, mesmo das dimensões infernais que atingiu o Haiti. É tudo uma questão de prioridades. A guerra e o lucro da guerra serão sempre mais prioritárias que as supostas ajudas do Império. Não gostei do que vi. Resta-me ajudar a AMI ou outra qualquer organização idónea e esperar que haja jornalistas que denunciem o que merece ser denunciado, que perguntem as nossas óbvias dúvidas e lutar para que se perceba que o único exército digno desse nome e que vale a pena ser formado é este: um enorme arsenal humanitário que valha às pessoas. Os EUA têm uma enorme know how que pode ser reconvertido de imediato. Mas dependerá das prioridades, claro.