O Eclipse, de Antonioni, 1962
A sequência final de O eclipse (1962), de Antonioni é notável: vazio, a impossibilidade, a incerteza, o desconforto. Sete minutos sem o agasalho da ficção, sete minutos de agoiro. Porém, esta sequência final, não foi bem entendida por todos. Nos Estados Unidos, por exemplo, o filme foi exibido várias vezes sem estes últimos sete minutos, que eram tidos um excesso, nada acrescentavam. Às vezes, com a melhor das intenções, cometem-se grandes injustiças.
A resenha a O Mundo Sólido, de João Paulo Sousa, no semanário Expresso de 27 de Junho, é um destes casos. A lucidez autocrítica, a tal que sinaliza a entrada em zona vermelha, falhou ao crítico que não conseguiu gerir a frustração de ver o seu horizonte de expectativas quebrado. Isto só costuma acontecer aos leitores menos avisados.
Começa, António Guerreiro por referir que a forma compacta do texto, cria a expectativa de “uma sintaxe em explosão que não se conforma às tradicionais convenções narrativas”.
Não entendemos o motivo que levou A.G. a prever uma explosão sintáctica. A forma compacta do texto – o bloco monolítico de palavras, sem suspensões, sem paragens, sem cortes - deixa adivinhar, desde o início, uma procura de contenção. A explosão – a existir – será no conteúdo, nunca na forma.
Em O Mundo Sólido não há (nem tal fazia sentido) caprichos sintácticos ou frenesis semânticos, mas uma obsidiante demanda de coerência entre a forma - sem parágrafos, sem capítulos – e o valor que cataforicamente o título projecta. A imagem da capa, o título e a mancha gráfica formam assim um todo consequente. Não é um “efeito gratuito”. Gratuita ( leia-se: infundada) é a adjectivação usada por A.G. para se referir a O Mundo Sólido.
A.G. refere-se, ainda, ao facto de O Mundo Sólido seguir as “regras da pura linearidade narrativa.” Passando a redundância, essa sim gratuita, da referência à “pura linearidade” (como é a linearidade impura? E a pura não-linearidade?), fixemo-nos na questão da linearidade narrativa. Com efeito, O Mundo Sólido não é, nem procura ser, uma narrativa fragmentária ou polifónica, mas, como o próprio A.G. reconhece, num outro ponto do seu texto, também não é puramente linear, uma vez que a memória desordeira de Francisco vai desarticulando o passado e o vai sobrepondo fantasmaticamente a outros episódios da sua existência. A sobreposição de planos do passado no presente e do presente no passado é, aliás, umas marcas deste romance. Um romance constantemente redescrito pelo tempo.
Quanto aos “protocolos da narrativa exageradamente explicativa” estes estão em consonância com a tentativa vã de Francisco de (re)construir um mundo sólido. As explicações, as reformulações são usadas pelo narrador não para dar conta do real, mas para descodificar a sua matriz relacional. Francisco não relata a realidade: procura criá-la. É esta a diferença entre a autoria experiencial e a autoria narrativa.
A.G. considera, ainda, que “a redundância e a artificialidade” triunfam devido à “imoderada repetição do «como se»”. Nada a opor. O discurso é artificial, porque é uma construção, ou melhor reconstrução da memória. É redundante, porque só esse caminho, nos permite, por sucessivas reformulações aceder a “alguma” verdade não factual.
Lamentamos, porém, corrigir A.G., uma vez que este falhou na contagem do “como se”. Diz Guerreiro que “só nas primeiras doze páginas podemos encontrar 19 vezes “como se””. Ora, iniciando-se o romance inicia-se na pg. 7, em rigor, nas primeiras 12 páginas , encontramos a expessão “como se” 21 vezes. Mais, acrescentamos: na totalidade da obra, “como se” surge 83 vezes.
Aquilo a que A.G: chama de “tique”, outros, menos avisados, seguramente, chamam simplesmente de repetição que funciona aqui como um expressivo dispositivo linguístico.
A repetição de fórmulas é uma estratégia narrativa, fortemente ancorada na oralidade, que procura criar uma cadência, além de, assim, contribuir para a coesão e organização discursiva e de promover a coerência textual. A.G. tem, legitimamente, um outro entendimento: vê aqui um “eco ruidoso que coloca o leitor à distância, porque este passa a ver no texto manifestações incontroladas de tiques de escrita”, estamos em crer que esta preocupação com o leitor é fruto de uma excessiva e maternal preocupação. Podemos, com firme convicção, afiançar a A.G. que não há perigo algum para o leitor. Onde uns pressentem ruído e dissonância, outros ouvem música.
Mas, se a metodologia da contagem de ocorrências é a eleita para aferir do valor do texto, juntamos as seguintes informações, que nos parecem ser de alguma utilidade:
O artigo definido “a” surge pelo menos 2005 vezes; a preposição “de” surge 1897 vezes e o “que” comparece no texto 1999 vezes. Um dado inquietante.
A morte e a vida estão em relação de quase equilíbrio (morte 27 vezes, vida 26 vezes), mas fala-se 11 vezes de viver e uma só em morrer.
A palavra amor nunca é referida, mas o medo ronda o texto (34 vezes).
Há mais “sempres” que “nuncas” : sempre 62 vezes, nunca 76 vezes.
Ela está mais do que ele (ela 178 vezes, ele 110).
Nenhum “sim”, mas 570 ocorrências do não.
Quanto à família: o pai é referido 93 vezes, o avô 82 vezes, o filho 48 vezes, a avó 39 vezes e a mãe, apenas, 18 vezes.
Janta-se mais do que se almoça (29 jantares e 11 almoços);
A estas palavras ( já agora, palavras 77 vezes), juntemos 15 ocorrências de “sorriso”, 11 de “angústia”, 24 de “dor” e 18 de ”cansaço”.
Uma leitura feita a partir desta informação, parece-nos para empregar termos caros a A. G., indigente e linear e, quiçá, de “falsa profundidade”, mas não duvidamos da eficácia operacional da metodologia.
Uma última nota, A.G. fala em “banalidade desconcertante”, para se referir à forma como o narrador se refere à paternidade. Se é desconcertante, já não é banal, mas não nos parece “banal” a ideia que desde a Ilíada, desde os alvores da literatura, a dor é presença obrigatória na relação com um filho. Nunca se fala em amor.
Para concluir, de forma não linear, recuperamos o início. O eclipse termina com uma longa sequência de espaços vazios. Alguns perceberam a ironia, o paradoxo, o desencanto, porém, para outros este final aproximar-se-á perigosamente dos lugares comuns “em versão mais culta.”
(P.S.: reparo, agora, que a coluna de A.G. também é compacta, deveríamos esperar uma “sintaxe em explosão”?)
A sequência final de O eclipse (1962), de Antonioni é notável: vazio, a impossibilidade, a incerteza, o desconforto. Sete minutos sem o agasalho da ficção, sete minutos de agoiro. Porém, esta sequência final, não foi bem entendida por todos. Nos Estados Unidos, por exemplo, o filme foi exibido várias vezes sem estes últimos sete minutos, que eram tidos um excesso, nada acrescentavam. Às vezes, com a melhor das intenções, cometem-se grandes injustiças.
A resenha a O Mundo Sólido, de João Paulo Sousa, no semanário Expresso de 27 de Junho, é um destes casos. A lucidez autocrítica, a tal que sinaliza a entrada em zona vermelha, falhou ao crítico que não conseguiu gerir a frustração de ver o seu horizonte de expectativas quebrado. Isto só costuma acontecer aos leitores menos avisados.
Começa, António Guerreiro por referir que a forma compacta do texto, cria a expectativa de “uma sintaxe em explosão que não se conforma às tradicionais convenções narrativas”.
Não entendemos o motivo que levou A.G. a prever uma explosão sintáctica. A forma compacta do texto – o bloco monolítico de palavras, sem suspensões, sem paragens, sem cortes - deixa adivinhar, desde o início, uma procura de contenção. A explosão – a existir – será no conteúdo, nunca na forma.
Em O Mundo Sólido não há (nem tal fazia sentido) caprichos sintácticos ou frenesis semânticos, mas uma obsidiante demanda de coerência entre a forma - sem parágrafos, sem capítulos – e o valor que cataforicamente o título projecta. A imagem da capa, o título e a mancha gráfica formam assim um todo consequente. Não é um “efeito gratuito”. Gratuita ( leia-se: infundada) é a adjectivação usada por A.G. para se referir a O Mundo Sólido.
A.G. refere-se, ainda, ao facto de O Mundo Sólido seguir as “regras da pura linearidade narrativa.” Passando a redundância, essa sim gratuita, da referência à “pura linearidade” (como é a linearidade impura? E a pura não-linearidade?), fixemo-nos na questão da linearidade narrativa. Com efeito, O Mundo Sólido não é, nem procura ser, uma narrativa fragmentária ou polifónica, mas, como o próprio A.G. reconhece, num outro ponto do seu texto, também não é puramente linear, uma vez que a memória desordeira de Francisco vai desarticulando o passado e o vai sobrepondo fantasmaticamente a outros episódios da sua existência. A sobreposição de planos do passado no presente e do presente no passado é, aliás, umas marcas deste romance. Um romance constantemente redescrito pelo tempo.
Quanto aos “protocolos da narrativa exageradamente explicativa” estes estão em consonância com a tentativa vã de Francisco de (re)construir um mundo sólido. As explicações, as reformulações são usadas pelo narrador não para dar conta do real, mas para descodificar a sua matriz relacional. Francisco não relata a realidade: procura criá-la. É esta a diferença entre a autoria experiencial e a autoria narrativa.
A.G. considera, ainda, que “a redundância e a artificialidade” triunfam devido à “imoderada repetição do «como se»”. Nada a opor. O discurso é artificial, porque é uma construção, ou melhor reconstrução da memória. É redundante, porque só esse caminho, nos permite, por sucessivas reformulações aceder a “alguma” verdade não factual.
Lamentamos, porém, corrigir A.G., uma vez que este falhou na contagem do “como se”. Diz Guerreiro que “só nas primeiras doze páginas podemos encontrar 19 vezes “como se””. Ora, iniciando-se o romance inicia-se na pg. 7, em rigor, nas primeiras 12 páginas , encontramos a expessão “como se” 21 vezes. Mais, acrescentamos: na totalidade da obra, “como se” surge 83 vezes.
Aquilo a que A.G: chama de “tique”, outros, menos avisados, seguramente, chamam simplesmente de repetição que funciona aqui como um expressivo dispositivo linguístico.
A repetição de fórmulas é uma estratégia narrativa, fortemente ancorada na oralidade, que procura criar uma cadência, além de, assim, contribuir para a coesão e organização discursiva e de promover a coerência textual. A.G. tem, legitimamente, um outro entendimento: vê aqui um “eco ruidoso que coloca o leitor à distância, porque este passa a ver no texto manifestações incontroladas de tiques de escrita”, estamos em crer que esta preocupação com o leitor é fruto de uma excessiva e maternal preocupação. Podemos, com firme convicção, afiançar a A.G. que não há perigo algum para o leitor. Onde uns pressentem ruído e dissonância, outros ouvem música.
Mas, se a metodologia da contagem de ocorrências é a eleita para aferir do valor do texto, juntamos as seguintes informações, que nos parecem ser de alguma utilidade:
O artigo definido “a” surge pelo menos 2005 vezes; a preposição “de” surge 1897 vezes e o “que” comparece no texto 1999 vezes. Um dado inquietante.
A morte e a vida estão em relação de quase equilíbrio (morte 27 vezes, vida 26 vezes), mas fala-se 11 vezes de viver e uma só em morrer.
A palavra amor nunca é referida, mas o medo ronda o texto (34 vezes).
Há mais “sempres” que “nuncas” : sempre 62 vezes, nunca 76 vezes.
Ela está mais do que ele (ela 178 vezes, ele 110).
Nenhum “sim”, mas 570 ocorrências do não.
Quanto à família: o pai é referido 93 vezes, o avô 82 vezes, o filho 48 vezes, a avó 39 vezes e a mãe, apenas, 18 vezes.
Janta-se mais do que se almoça (29 jantares e 11 almoços);
A estas palavras ( já agora, palavras 77 vezes), juntemos 15 ocorrências de “sorriso”, 11 de “angústia”, 24 de “dor” e 18 de ”cansaço”.
Uma leitura feita a partir desta informação, parece-nos para empregar termos caros a A. G., indigente e linear e, quiçá, de “falsa profundidade”, mas não duvidamos da eficácia operacional da metodologia.
Uma última nota, A.G. fala em “banalidade desconcertante”, para se referir à forma como o narrador se refere à paternidade. Se é desconcertante, já não é banal, mas não nos parece “banal” a ideia que desde a Ilíada, desde os alvores da literatura, a dor é presença obrigatória na relação com um filho. Nunca se fala em amor.
Para concluir, de forma não linear, recuperamos o início. O eclipse termina com uma longa sequência de espaços vazios. Alguns perceberam a ironia, o paradoxo, o desencanto, porém, para outros este final aproximar-se-á perigosamente dos lugares comuns “em versão mais culta.”
(P.S.: reparo, agora, que a coluna de A.G. também é compacta, deveríamos esperar uma “sintaxe em explosão”?)