domingo, junho 28, 2009

Uma Ideia Tênue de Mulher, Luis Maffei escreve sobre A Inexistência de Eva, de Filipa Leal


Filipa Leal e Luis Maffei


UMA IDEIA TÊNUE DE MULHER
(recensão em A Pequena Morte, nº 14, sobre a A inexistência de Eva, de Filipa Leal. Porto: Deriva, 2009)

Diz Miguel Ramalhete Gomes: “(…) em Filipa Leal, (…) a habitação poética é o que cria o lugar”. [1] Começa A inexistência de Eva: “Era uma mulher que estava dentro de uma sala muito branca./ Ouviu: - Não fujas. Não esqueças./ Era uma mulher lívida de medo de não conseguir esquecer” (p. 9). [2] Uma evidente narratividade, um discurso ao fundo, a se ouvir em se ouvindo. E uma “casa”, uma “habitação poética” porque expressável apenas poeticamente, “muito branca” e, portanto, muito perto de não existir. Inexiste Eva, inexiste a casa, existem Eva e casa porque existe um lugar, habitável, habitado e pronto a se transformar em branco de papel e sabor: “à volta da sala, havia um pomar redondo que a envolvia de maçãs avermelhadas, difusas. Ela estava lívida e suja, entre a castidade e o remorso./ Ouviu: - Esquece o arrependimento. Fica” (p. 10). A trajetória da mulher terá de ser aprendizado. Um deles: ler Adília Lopes e perceber que “(…) o prazer é casto/ o que não é casto/ é o simulacro do prazer/ ou a renúncia ao prazer/ tanto o simulacro/ como a renúncia”. [3] Filipa Leal certamente já o aprendeu, pois Adília é um dos autores que comparecem a sua Dissertação de Mestrado. Mas, no livro, a mulher é outra.
Não bastam as maçãs, seria uma imagem previsível. São as maçãs “difusas”, o que tanto confunde como difunde a herança da mulher bíblica – Eva “desconhecia o texto bíblico” (p. 13), o que tira do jogo referencial qualquer óbvio esconde-esconde, por não ocultar o que estaria, de qualquer modo, cristalino. Desde o título eu gosto que Eva só exista também difusamente, mas que sua beleza seja expansiva, pois a beleza tem de poder ser uma invenção ao menos da leitura, pois não sei se pode ser, lucidamente, de Eva: “Não havia um único espelho na sala” (p. 12). É curioso que ela não se possa ver, nem ao contrário, o que torna difuso até mesmo o enfrentamento da pesadíssima memória que seu nome traz. “Ela (…) nunca medira a sala, nem o pomar, nem o terror. Se desejasse, abriria a porta” (p. 12). Não “medira” “o terror”, mas teme. “Se desejasse”, mas já se encontra muito próxima do desejo. E quem fala? “Ouviu: - Assustar-te-á a existência/ de dia e de noite” (p. 12). De que existência, afinal, se trata? A de qualquer um e de todos, que assusta porque existem as relações e o mundo? Ou a do “dia” e da “noite”, o ciclo ininterrupto de cronos e de outros metafóricos (e não) tempos?
“Sabia o seu nome. Chamava-se Eva” (p. 13). Logo, sabe Eva de uma existência ao menos vindoura, na rua, no mundo, potencial nova “habitação poética”. E poderá ser outro o nome? “Nunca o questionara” (p. 13), mas talvez o venha a fazer em virtude do direito que têm Eva e Filipa ao batismo. O feminino é quem nomeia, quem inaugura: “Ouviu: - És a primeira mulher nesta sala por dentro do pomar. Não te mistures com os outros” (p. 14). Não era, no entanto, “a primeira de todas as mulheres, sublinhe-se, mas a primeira a habitar aquela brancura indefinida” (p. 15). Se é de uma “habitação poética” que se trata, tratar-se-á também de uma gestação, pois Eva é gerada em estado de inexistência (que posso ler como pré-existência e, ao mesmo tempo, existência futura) e “havia”, na sala, “uma arca cheia de animais de pedra, de barro, de madeira” (p. 15), uma anterioridade com que é possível brincar. Uma espécie de infância, uma possibilidade poética de co-regência do mundo, ao menos do mundo pessoal: “E desconhecia que, dentro da sua arca, eram assim os objectos porque eram assim os animais, fora dela” (p. 15): se existe uma lei externa a essa mulher, existe a mulher que sabe seu nome, e que, portanto, tem já uma flagrante hipótese de relação e autoconhecimento.
“Um dia, tirou da arca uma serpente de barro amolecido pela humidade. Juntou-lhe as duas pontas e foi dobrando e moldando o círculo. Quando a guardou, tinha já a forma de um coração” (p. 17). Eva não cria o mundo, ela [4], de algum modo, sofre as consequências de uma memória que lhe é anterior, mesmo no nome que tem e tem-na. Mas Eva lida com o mundo, e é capaz de manipular, numa dimensão criativa e transgressora, até mesmo a “serpente”, e benfazejo é seu desconhecimento, permissor da cardiomorfização de um símbolo: não o pecado, pois porventura virá a inexistir pecado para essa Eva, nem a oroboro. O símbolo é outro, e infantilmente moldado. Há, sim, futuro para o “coração”, há futuro: “As janelas da sala eram de uma brancura opaca, espessa. Havia momentos em que se perguntava para que serviriam. Ficava à janela branca, como a parede e a pele, desconhecendo que dali deveria poder ver o pomar, e algumas cópias dos animais com que brincava” (p. 18).
Algo, entre certo platonismo e o aprisionamento da brancura, prende Eva, o que me faz lembrar da coloração do único grande filme realizado por George Lucas, THX 1138. Não obstante, a sugestão uterina insiste em apontar para a existência de uma mulher que terá sua existência para além do que a cultura aprisiona em culpa e na prevalência do masculino – não sei se é masculina a voz que enceta as diversas ocorrências de “Ouviu” no livro, mas é voz, decerto, de que Eva pode desconfiar. E confiar no mundo, nesse livro, é poder dar-lhe uma origem, dar-se uma origem: “Trazia consigo a sensação da inexistência do mundo” (p. 19): há-de ser criado, assim, um lugar no mundo para Eva, por Eva, a que sabe artesanar uma serpente e escapar tanto do Éden como da oroboro: fiat lux, já que “não sabia de onde chegara, e talvez por isso lhe parecesse errado partir” (p. 19): a culpa, é claro, mas também a errância que lha espera. Assim, “errado” será sobretudo errático, e nenhum caminho é óbvio à partida.
“Ouviu: - Se partires, não regressarás/ a lugar algum. Nunca se regressa/ partindo” (p. 19). Há complexidade nessa voz, há orientação, tradicionalismo, sabedoria e certa carga opressora – mesmo porque existe a “culpa, o remorso” (p. 26). Mas “Eva tinha uma ideia ténue do mar. Guardava-a como quem guarda a certeza de uma cidade líquida” (p. 22). A cidade líquida e outras texturas é título dum livro anterior da poeta, editado em 2006. Em 2008, Filipa Leal edita O problema de ser norte, título que sugere identificação geográfica (é portuense a poeta, e o Porto é presença às vezes explícita em sua poesia), mas também o quão é crítico orientar-se, nortear-se, viver, enfim – e Eva à “cidade” (não necessariamente um Porto de rio, mar e chuva), à vida está projetada. Faz sentido citar apenas uma expressão do livro anterior: “Havia uma íntima surpresa na palavra/ do início”. [5] A Filipa interessa o “início”, mas feito palavra para ser feito início; faz sentido citar apenas dois títulos de A cidade líquida e outras texturas: “A primeira ave” e “O primeiro homem” [6], respectivamente às páginas 14 e 15. A Filipa interessa a origem, mas feita palavra para ser feita origem, não gênese, mas fonte.
A Eva fascinava “a incompreensão das coisas, como aos pensadores aterroriza a incompreensão do mundo” (p. 23); se assim, Eva não se encontra distante de um lugar de poesia, pois para os poetas, se a “incompreensão do mundo” é dado terrífico, o terror não difere, em diversos casos, da beleza: há beleza em Eva, repito, e é expansiva. Seu “medo” “era o de não conseguir esquecer a sua própria inexistência” (p. 23). No entanto, lida ela com a existência das coisas, inclusive da “maçã”, que “mastigava calmamente”, “prolongando o prazer daquilo que desconhecia ser uma refeição” (p. 28), mas de que conhecia o gozo; inclusive de uma “árvore”, que “começou a nascer” “no centro da sala” (p. 30) como fosse uma religiosa presença natural dentro da casa-ventre-cárcere, presença sem dogma, sem algemas.
“Eva abriu a arca. Dela retirou o pó e a serpente em forma de coração” (p. 35). Se líquida a cidade, que se possa pensar em uma aventura nada bíblica a partir da arca cheia de bichos em forma representada. Eva poderá ganhar um mundo aberto, a ela, pois seu mundo deixará de ser a “casa”: “Quando despertou, a árvore tinha desaparecido, bem como a arca, as maçãs, as janelas opacas. Nada” (p. 37): nasce, não “A primeira mulher”, pois Filipa Leal jamais escreveu poema assim intitulado; nasce alguém já nascido, mas tão reformado como a serpente cardiomorfizada. Eva “abriu a porta com a líquida sensação de que nenhuma fuga era possível” (p. 38), já que não se trata, com efeito, de uma “fuga”, existindo um destino inescapável a esperar por essa mulhar, humana e feita humana no mundo. Por outro lado, não se trata de uma fuga porque, quiçá, ela nunca esteve encarcerada, mas num outro espaço contentor: o de sua própria criação. Encerrar-se o livro, portanto, com outro som, não o da voz sempre apresentada por “Ouviu”, mas por um ruído também apresentado assim: “Ouviu o mar” (p. 39). Fosse música, seria das mais belas.
NOTAS
[1] GOMES, Miguel Ramalhete. Morar e rememorar. O lugar em Cidade líquida e outras texturas, de Filipa Leal. In EIRAS, Pedro (org.). Jovens ensaístas lêem jovem poetas. Porto: Deriva, 2008.
[2] É difícil decidir pela colocação ou não de barras entre os versos/ frases de cada um dos textos do livro, pois não sei como decidir se se tratam de versos ou frases. Algures não porei barras, e fica dita a indecedibilidade.
[3] LOPES, Adília. Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000. p. 46.
[4] Noto, e apenas aponto, a semelhança fonética entre Eva, nome próprio, e ela, pronome feminino, pessoal e do feminino.
[5] LEAL, Filipa. O homem que existiu. In —– O problema de ser norte. Porto: Deriva, 2008. p. 18.
[6] _____. A cidade líquida e outras texturas. Porto: Deriva, 2006.

Capa de A Inexistência de Eva