quarta-feira, abril 15, 2009

«A negatividade do narrador é uma forma de recuperar a espessura da memória, de recusar a sua transformação em artigo de fancaria.», João Paulo Sousa

João Paulo, depois de A Imperfeição (2001) e Os Enganos da Alma (2002) escreveu este livro notável, O Mundo Sólido. Sete anos de interregno na produção literária. Há alguma razão plausível para isso?
Não estive afastado da literatura durante esse tempo, apenas não publiquei nenhum livro. Escrevi um ensaio longo sobre a obra ficcional de Almada Negreiros (uma dissertação académica) e vários outros, mais breves, sempre relacionados com a arte literária. Além de textos de carácter mais fragmentário, comecei já um novo romance. Faço notar, contudo, que o ritmo de escrita de Os Enganos da Alma foi mais rápido porque tive a felicidade de beneficiar de uma bolsa de criação literária, atribuída pelo Ministério da Cultura de então, permitindo que eu dispusesse de mais tempo para esse trabalho.


Enquanto estive a ler os seus primeiros livros assaltava-me a ideia de fazerem parte, juntamente com O Mundo Sólido, de uma trilogia, visto que as relações pessoais e a solidão estão sempre presentes. É assim?
Não pensei neles nesses termos, visto que tenho tendência para encarar cada livro como um objecto autónomo, ou mesmo independente, dos outros. Em todo o caso, admito que haja obsessões que transitem de uma obra para outra, pois nenhum escritor que procure efectivamente criar os seus mundos escapa a essa reiteração (que não deve, de qualquer modo, ser confundida com o que Danilo Kiš designou como autoplágio).

O mundo é sólido ou contingente? Explico melhor: há sempre a possibilidade de uma ruína iminente, não é?
Para o narrador do meu romance, esse é um problema recorrente. Ele confronta­‑se com a perda de solidez do mundo, com a ideia de que a passagem do tempo conduz inexoravelmente a uma desagregação, mas insiste em tentar reconstruir alguma da ordem perdida.

Um dos momentos mais especiais do livro é quando Francisco se encontra com Paola no Coliseu romano e revê o passado, a dor dos mártires. O passado é essencialmente constituído pela dor?
Nessa cena, Francisco tem, de súbito, uma consciência aguda do que poderia ter sido a dor de seres humanos que passaram por aquele espaço. É uma espécie de epifania negativa, que contrasta com o modo como o lugar é vendido aos turistas, como a memória se banaliza e o passado se reduz a um mero ornamento. A negatividade do narrador é, portanto, uma forma de recuperar a espessura da memória, de recusar a sua transformação em artigo de fancaria.

Para além do recurso ao Coliseu, a Ilíada aparece igualmente como explicativa desse mesmo desfasamento com o passado, dessa dificuldade em compreender o presente a não ser pela dor, principalmente pela acção de Príamo, pai de Heitor. Preparação do leitor para a relação de Francisco com o seu pai?
A relação de Francisco com o pai é marcada por vários equívocos, como também o é a relação com o filho. Ao contrário da visão idílica das ligações familiares, estas personagens expõem com nitidez os seus conflitos, e Francisco procura mesmo dissecar os fundamentos dessa incompreensão. Não se trata, porém, de um problema específico da contemporaneidade, como a presença da Ilíada o vem demonstrar.

A arquitectura está sempre presente em O Mundo Sólido desde Piero della Francesca, até Le Corbusier passando por Eiffel. À procura de uma cidade ideal, como Campanella, Santo Agostinho ou mesmo More?
Não será, naturalmente, por acaso que ao narrador coube a profissão de arquitecto. Os seus conhecimentos específicos servem­‑lhe para reflectir sobre a ocupação do espaço pelo indivíduo e para concluir pelo absurdo de várias propostas, elaboradas ao longo dos tempos. Essas construções funcionam, para Francisco, como uma expressão da irracionalidade do ser humano, em contraponto com as soluções ideais, mas nunca concretizadas, que ele também refere.

Durante a leitura de O Mundo Sólido deparamo-nos com várias impossibilidades: de alegria, da família, até de uma «pátria» impossível e aparentemente sólida. Mesmo a revolução que a substitui é encarada como inverosímil. É pessimismo?
Eu diria que o optimismo ilusório do narrador se foi perdendo ou gastando com o decurso do tempo. A crença em qualquer tipo de solução colectiva, quer ela passasse pela pátria, pela revolução ou, mais humildemente, pela família, parece destinada ao fracasso. Em todo caso, e até pelo simples facto de a personagem narrar todos esses dilemas, de os problematizar até com uma certa dose de exagero, não se poderá dizer que é um desistente. Talvez, portanto, possamos falar em pessimismo à maneira de Schopenhauer ou de Nietzsche.

Parece que a única existência real, portanto sólida, é a do indivíduo e do seu centro perante a infinitude do universo. O recurso a Giordano Bruno é, em si mesmo, uma metáfora do mundo?
Giordano Bruno representa a defesa da razão contra todos os tipos de obscurantismo. Nessa medida, ele torna­‑se também um representante do indivíduo, preso na solidão a que o confronto com o mundo o condena, mas é também uma estátua, relativamente ignorada, no centro de uma praça onde o mais importante é o negócio, porque aí decorre habitualmente uma feira.