A capa de Um Punhado de Terra que se encontra, a partir de hoje, nas livrarias e Pedro Eiras
Pedro, como te surgiu a ideia de escrever um monólogo sobre a expansão portuguesa? E porquê um monólogo? Pergunto-te isto porque uma obra sobre a expansão teria um carácter, digamos, mais epopeico, com muitos actores e imensos meios.
Precisamente, António Luís: o épico não me interessa. Escrevi um monólogo para recusar determinados heroísmos prontos-a-consumir, míticos. Não quis a narrativa colectiva de um poder legitimador, mas o testemunho individual e silenciado. Que não é épico. Talvez seja trágico, se a palavra não tiver demasiadas ressonâncias gregas para o que quero experimentar aqui. A epopeia exalta, a tragédia interroga; eu quero interrogar, interrogar-me. Para responder à tua pergunta: escrevi porque compreendo aquela maldição que o homem negro endereça no fim, contra os torturadores e os seus descendentes. Sou amaldiçoado. Ouvi essa maldição. Precisei de a escrever.
Há pouco tempo chegou-me um documento internacional, através do Le Monde Diplomatique, que focava a necessidade de enfatizar os crimes em nome da expansão portuguesa. Achas que se está perante um branqueamento ou revisionismo histórico dos chamados descobrimentos, 35 anos depois de inaugurada a democracia?
Liverpool, que foi um porto nuclear na passagem e distribuição de escravos ingleses, tem um museu sobre a escravatura. Portugal escravizou três continentes durante 500 anos e não tem um museu. Mas tem incontáveis narrativas épicas: de Os Lusíadas a Mensagem, para não falar dos monumentos, e de uma mitologia tenaz. A interrogação está por fazer. Há, claro, o aviso lúcido de Eduardo Lourenço, para quem Portugal não pensa a História que fez; vivemos uma cegueira histérica, um tabu. Esse pensamento às vezes é desenvolvido mais depressa fora de Portugal, o que é assustador. Por que nos censuramos, então? Porque desfazer mitos é doloroso? Não tenho medo dessa dor.
Inicias Um Punhado de Terra com um provérbio muito português «Além do Equador tudo é permitido». É em nome dessa pretensa liberdade que se fizeram os maiores crimes? Não é uma contradição?
Se compreendo bem o provérbio, não é uma contradição, é uma justificação, aliás cínica. Depois do Equador, as leis deixam de vigorar, ou de existir, portanto todo o crime é permitido. Deixa de haver justiça: não é a liberdade, mas a ditadura selvagem dos conquistadores. Já que falamos aqui de tragédia grega: é o percurso contrário ao da Oresteia – da justiça para o caos, onde só vale a soberania das armas. Depois do Equador, já não se trata do mundo, mas da terra de ninguém, onde se pode cometer violência sem se ser vigiado e julgado. Como dizem Benjamin e Agamben, noutros contextos: o estado de excepção torna-se a regra.
Tens necessidade de apelar no fim do livro à veracidade dos factos e vais às fontes coevas como Zurara ou Las Casas. Contudo, dás uma especial ênfase aos Ministros da Noite de Ana Barradas. De algum modo te impressionou este livro?
Acho que nenhum leitor, em boa-fé, pode deixar de se sentir impressionado. O livro de Ana Barradas tem como sub-título – e penso que é sintomático – O Livro Negro da Expansão Portuguesa. Lê-se aí a expansão como séculos de crimes, incluindo a guerra colonial. E a guerra colonial foi ontem. Foi real, não um pesadelo de que acordássemos intactos. O livro de Ana Barradas é muito corajoso, ao escrever uma História ao arrepio das versões oficiais. Os próprios manuais nas escolas incluem hoje uma secção sobre a escravatura: uma ou duas páginas. Mas a história dos descobrimentos, inovações técnicas, “trocas culturais”, etc., ocupa dezenas de páginas. A escravatura aparece como um episódio infeliz que teve de ser pago para se conseguir a grande empresa dos descobrimentos. Mas eu leio os livros e manuais, e só consigo sentir o sofrimento.
Tenho a sensação que não vai ser fácil a encenação desta obra de teatro; primeiro, porque é um monólogo e todos os monólogos são difíceis, mas também porque o texto é como se fosse uma faca apontada a cada um de nós. Tens essa noção?
Sim, todos os monólogos são difíceis, espero que isso seja um desafio aliciante. Este é um monólogo muito simples, é simplesmente uma voz que diz a dor. Espero que isso seja muito, muito difícil. E estou de acordo contigo, é – deve ser – uma faca apontada a cada um de nós. Mas o teatro que me interessa é uma faca, sempre. Quanto a encenações, de qualquer modo, já há uma companhia interessada…
As tuas peças de teatro estão traduzidas em França, na Roménia e no Brasil. Gostarias de ver esta peça encenada em países que sofreram na pele a escravatura?
Gostaria de ver a peça estreada em Portugal, porque ela se dirige a mim, como pessoa educada dentro do próprio mito dos descobrimentos, dirige-se a nós, portugueses, europeus, ocidentais. Depois dessa estreia, sim, claro que gostaria de a ver encenada fora de Portugal. Mas penso que a peça deve começar por dirigir-se à nossa escrita da História, foi daí que parti. De resto, a escravatura mudou de nome, mas não deixa de existir, de muitas formas, perto de nós. Infelizmente, não é um tema inactual. Se a maldição daquele homem negro puder obrigar-nos a pensar e a reconhecer os novos escravos, os despojados de terra, de identidade, de justiça, então talvez este punhado de terra possa ser partilhado.
Precisamente, António Luís: o épico não me interessa. Escrevi um monólogo para recusar determinados heroísmos prontos-a-consumir, míticos. Não quis a narrativa colectiva de um poder legitimador, mas o testemunho individual e silenciado. Que não é épico. Talvez seja trágico, se a palavra não tiver demasiadas ressonâncias gregas para o que quero experimentar aqui. A epopeia exalta, a tragédia interroga; eu quero interrogar, interrogar-me. Para responder à tua pergunta: escrevi porque compreendo aquela maldição que o homem negro endereça no fim, contra os torturadores e os seus descendentes. Sou amaldiçoado. Ouvi essa maldição. Precisei de a escrever.
Há pouco tempo chegou-me um documento internacional, através do Le Monde Diplomatique, que focava a necessidade de enfatizar os crimes em nome da expansão portuguesa. Achas que se está perante um branqueamento ou revisionismo histórico dos chamados descobrimentos, 35 anos depois de inaugurada a democracia?
Liverpool, que foi um porto nuclear na passagem e distribuição de escravos ingleses, tem um museu sobre a escravatura. Portugal escravizou três continentes durante 500 anos e não tem um museu. Mas tem incontáveis narrativas épicas: de Os Lusíadas a Mensagem, para não falar dos monumentos, e de uma mitologia tenaz. A interrogação está por fazer. Há, claro, o aviso lúcido de Eduardo Lourenço, para quem Portugal não pensa a História que fez; vivemos uma cegueira histérica, um tabu. Esse pensamento às vezes é desenvolvido mais depressa fora de Portugal, o que é assustador. Por que nos censuramos, então? Porque desfazer mitos é doloroso? Não tenho medo dessa dor.
Inicias Um Punhado de Terra com um provérbio muito português «Além do Equador tudo é permitido». É em nome dessa pretensa liberdade que se fizeram os maiores crimes? Não é uma contradição?
Se compreendo bem o provérbio, não é uma contradição, é uma justificação, aliás cínica. Depois do Equador, as leis deixam de vigorar, ou de existir, portanto todo o crime é permitido. Deixa de haver justiça: não é a liberdade, mas a ditadura selvagem dos conquistadores. Já que falamos aqui de tragédia grega: é o percurso contrário ao da Oresteia – da justiça para o caos, onde só vale a soberania das armas. Depois do Equador, já não se trata do mundo, mas da terra de ninguém, onde se pode cometer violência sem se ser vigiado e julgado. Como dizem Benjamin e Agamben, noutros contextos: o estado de excepção torna-se a regra.
Tens necessidade de apelar no fim do livro à veracidade dos factos e vais às fontes coevas como Zurara ou Las Casas. Contudo, dás uma especial ênfase aos Ministros da Noite de Ana Barradas. De algum modo te impressionou este livro?
Acho que nenhum leitor, em boa-fé, pode deixar de se sentir impressionado. O livro de Ana Barradas tem como sub-título – e penso que é sintomático – O Livro Negro da Expansão Portuguesa. Lê-se aí a expansão como séculos de crimes, incluindo a guerra colonial. E a guerra colonial foi ontem. Foi real, não um pesadelo de que acordássemos intactos. O livro de Ana Barradas é muito corajoso, ao escrever uma História ao arrepio das versões oficiais. Os próprios manuais nas escolas incluem hoje uma secção sobre a escravatura: uma ou duas páginas. Mas a história dos descobrimentos, inovações técnicas, “trocas culturais”, etc., ocupa dezenas de páginas. A escravatura aparece como um episódio infeliz que teve de ser pago para se conseguir a grande empresa dos descobrimentos. Mas eu leio os livros e manuais, e só consigo sentir o sofrimento.
Tenho a sensação que não vai ser fácil a encenação desta obra de teatro; primeiro, porque é um monólogo e todos os monólogos são difíceis, mas também porque o texto é como se fosse uma faca apontada a cada um de nós. Tens essa noção?
Sim, todos os monólogos são difíceis, espero que isso seja um desafio aliciante. Este é um monólogo muito simples, é simplesmente uma voz que diz a dor. Espero que isso seja muito, muito difícil. E estou de acordo contigo, é – deve ser – uma faca apontada a cada um de nós. Mas o teatro que me interessa é uma faca, sempre. Quanto a encenações, de qualquer modo, já há uma companhia interessada…
As tuas peças de teatro estão traduzidas em França, na Roménia e no Brasil. Gostarias de ver esta peça encenada em países que sofreram na pele a escravatura?
Gostaria de ver a peça estreada em Portugal, porque ela se dirige a mim, como pessoa educada dentro do próprio mito dos descobrimentos, dirige-se a nós, portugueses, europeus, ocidentais. Depois dessa estreia, sim, claro que gostaria de a ver encenada fora de Portugal. Mas penso que a peça deve começar por dirigir-se à nossa escrita da História, foi daí que parti. De resto, a escravatura mudou de nome, mas não deixa de existir, de muitas formas, perto de nós. Infelizmente, não é um tema inactual. Se a maldição daquele homem negro puder obrigar-nos a pensar e a reconhecer os novos escravos, os despojados de terra, de identidade, de justiça, então talvez este punhado de terra possa ser partilhado.